12 out
Uma história de leitura: bebês ensinam a professora a ler
Sim, os bebês entendem de leitura. À maneira deles, naturalmente. E isso é o mesmo que dizer: à maneira da literatura. Afago, afeto, sons, ritmos, imagens, gestos… Os bebês se movem pelo encantamento. É o que descobriu a jovem Milena, professora da Prefeitura de São Paulo. Da descoberta à prática de leitura, diariamente e a toda hora, com os alunos da Educação Infantil, houve muitos experimentos. Depois de se convencer do que deveria ser feito, Milena se deparou com o que talvez seja a grande pergunta da profissão: Como fazer? Até o dia em que ela aprendeu a ler os bebês… Em entrevista concedida ao Dia Nacional da Leitura, a educadora fala do seu processo de aprendizagem, de suas práticas, e nos revela por que os bebês “protegem” a literatura do seu uso meramente “paradidático”, “cognitivo” e “pedagógico”.
Quando você descobriu que era possível oferecer leitura para crianças desde o berço? E como a faculdade de Pedagogia abordava esse tema?
Não abordava. Eu saí da faculdade e fui dar aula numa escola particular, e lá também não tratávamos disso. E quase tudo o que eu fazia nessa primeira escola eu tive que desconstruir na outra. Por exemplo, dar desenhos prontos e de personagens de filmes da Disney para as crianças pintarem, algo sem a menor criatividade, sem nenhum sentido. Mas, quando eu passei no concurso da Prefeitura de São Paulo, tive a sorte de ir parar numa escola onde a coordenadora pedagógica era muito exigente e não admitia que não fôssemos criativos. Quando ela falou que naquela escola se trabalhava leitura com crianças (com os bebês) eu achei que não era possível; eu não achava que as crianças fossem capazes de “entender”!
Da sua surpresa inicial até a prática de leitura com seus alunos, como foi o processo? Houve uma formação específica para isso?
Eu tive muita dificuldade, porque senti um distanciamento entre a teoria e a prática. Vejo esta mesma angústia em meus colegas em todas as escolas por onde passo. Todos nós sabemos o que devemos fazer, mas nenhuma teoria nos diz como. O máximo que se diz é “o professor é quem deve buscar suas respostas, encontrar meios, buscar estratégias, etc”. Isso me causava uma angústia enorme. Eu dizia à coordenadora que eu não sabia como fazer. Mas ela me encorajava e me deu todo o apoio necessário, sempre. Aos poucos, eu fui assimilando a teoria sobre leitura para bebês ma medida em que eu praticava a leitura com meus alunos. Consegui buscar caminhos, meios e estratégias. E foi nas próprias crianças que encontrei. Fui experimentando e arriscando, sempre pensando “vamos ver no que vai dar’. E me surpreendi, deu certo. Tive que “constatar” na prática que aquelas crianças aprendiam tudo o que era oferecido a elas. As crianças absorvem tudo o que está no seu meio, elas se apropriam da cultura e nós, educadores, temos o papel essencial de lhes oferecer elementos culturais. E por que não a leitura, que é um produto cultural? Uma vez a coordenadora leu com os professores o livro Negrinha, de Monteiro Lobato. Depois de brincar pela primeira vez, o brinquedo se tornou uma necessidade para Negrinha e, quando isso lhe foi tirado, ela morreu. Aprendi que, como educadora, tenho o dever de criar certas necessidades culturais, como a necessidade de ler e brincar. Isso nos faz humanos e uma educação pautada neste princípio torna-se uma educação humanista.
O que você constatou na aprendizagem das crianças, de modo a desmistificar aquela ideia inicial de que elas não entendiam?
Como disse Paulo Freire, “a leitura do mundo antecede a leitura das palavras”, e na Educação Infantil já iniciamos o processo de letramento com crianças pequenas, os bebês. Trabalhar a leitura com eles permite uma experiência prazerosa. Compreendem, a longo prazo, que uma ideia pode ser representada em palavras. Este conceito parece ser tão simples e óbvio para nós, mas para eles é muito abstrato, é necessário que alguém lhes ofereça este conceito. A criança precisa ter muitas vivências com leitura para compreender seus aspectos, a possibilidade de brincar com palavras, de criar o impossível… Meu trabalho com leitura é pautado na ideia de que a leitura não se limita a uma ação educativa no âmbito escolar. Leitura é ação social e, por isso, não há idade ou série mais adequada para trabalhá-la. Leitura pode (e deve) estar presente na vida de uma pessoa (e não só de aluno) desde o nascimento atá o último dia de vida.
Uma vez que as crianças aprendem, o que muda? Que tipo de comportamento elas expressam e que jamais expressariam sem o contato com os livros?
No Centro de educação Infantil onde trabalhei, há sete salas de Mini grupo (crianças de dois a três anos) e dois Berçários. Portanto, temos duas turmas que frequentam o CEI desde que tinham meses de vida quando entraram no berçário e cinco turmas que entram direto no Mini grupo. Percebemos a grande diferença entre estas crianças que estão no CEI desde bebês e as outras, que chegam apenas com a educação da família. As crianças que entraram no berçário, aos dois anos já possuem o comportamento leitor, gostam de histórias, folheiam os livros, imitam a professora fazendo a mediação de leitura. Pedem para contar histórias. Quando me sento com o livro na mão, todos, com poucas exceções, sentam-se e em silêncio (muitas vezes é inacreditável) ouvem as histórias muito atentos, se divertem, comentam, formulam hipóteses sobre os fatos, sobre o que pode acontecer e muitas vezes sentem medo e alguns até choram. Por exemplo, muitos têm medo das imagens de alguns livros, com bruxas, lobos e monstros. Eles choram, pedem para parar de ler, mas no outro dia pedem para fazer a leitura do mesmo livro. Ou seja, existe um fator psicológico, um jogo, ele está dominando seus sentimentos e angústias.
Se as crianças que chegam à escola “apenas com a educação da família” não expressam um comportamento leitor, o que a família precisa oferecer a elas, antes do seu ingresso na escola?
Oferecer livros é da responsabilidade da família também. Assim como se fala que é importante oferecer amor, cuidado, atenção, também é necessário oferecer livros, pelo motivo de que a leitura é ação social, e não só escolar. Lembramos bem do que ocorria com frequência antigamente, quando as pessoas se sentavam em família para contar histórias, os “causos”, momentos de narrativas, de escuta. Família é o lugar e o momento de aprendizagens diversas, de afeto, de formação de vínculos, de construção de valores e, por consequência, do amor, cuidado, atenção. Temos que recuperar esses contextos; neles são construídas tantas aprendizagens!
E a escolha do acervo? O que ler para crianças tão pequenas?
O critério é: tudo o que há da melhor qualidade. Buscar materiais simples, com pouco conteúdo, é limitar e subestimar a capacidade das crianças. Certos materiais não terão o mesmo retorno do que outros, mas isso faz parte do processo educativo, alguns resultados são imediatos e outros são de longo prazo. Tudo o que oferecemos às crianças buscamos nos grandes artistas e na cultura popular brasileira: músicas, imagens, obras de arte, vídeos…
Na prática, quais as estratégias que você utiliza para mediar a relação entre os bebês e os livros?
O trabalho com leitura para bebês envolve muita exploração dos livros. Eles pegam, põem na boca, brincam, dão outras funções, fazem casinha, fazem de avião. Isso é permitido, porque criança se apropria da cultura e do mundo pela brincadeira. Naturalmente ofereço os livros, peço para que não rasguem, fico sempre por perto para evitar que isso aconteça. Aos poucos eles percebem como se utiliza o livro. As leituras são atividades permanentes, contadas todos os dias ou quando necessário, desde que seja frequente e que ocorra de maneira natural. Bebês nos ensinam a trabalhar o conceito de que não precisamos trabalhar sempre a mesma coisa com todos e ao mesmo tempo. Então eu sento no chão, mostro o livro para quem está por perto, conto a história, exploro as imagens, faço questionamentos para que façam reflexões sobre o que é lido. Cada educador deve explorar seus recursos pessoais para a mediação de leitura: expressões faciais, vozes, etc. O papel do professor deve ser de observação constante e investigação. Certo momento pensamos: “Por que não leitura de livros sem imagens?”. Houve experiências de outras professoras que leram em capítulos Monteiro Lobato para as crianças. Então comecei a oferecer cordéis. Iniciei mostrando o cordel, sempre questionando: O que é isso? É diferente, não é? Por quê? Será que tem história? Como será esta história?, sempre buscando fomentar a curiosidade deles. Então decidi contar em capítulos, sempre marcando as rimas com um instrumento musical. Ao final da leitura fazia uma retomada do que foi lido, o que aconteceu, por que, etc. No outro dia continuava mais um trecho, sempre com muitas reflexões e questionamentos, porque o texto é muito abstrato para quem entra em contato com livros sem imagens pela primeira vez. Mas eles seguiam a rima, a musicalidade do texto, percebiam a sonoridade do cordel. Assim fui contando diariamente e eles se apaixonando pela história do Pavão Misterioso. E reproduziam isso nas brincadeiras, traziam as falas e alguns fatos.
De tudo o que você nos relatou até aqui, em nenhum momento a literatura aparece com uma função paradidática, como algo que se aplicasse ou avaliasse pela capacidade de “transmitir conteúdo”. Por quê?
O trabalho com crianças bem pequenas nos ensina muito: elas não permitem “didatização” de conteúdos, todos fazendo a mesma atividade ao mesmo tempo. Eu fui obrigada a conquistá-las, tornar a aprendizagem interessante, a proporcionar momentos prazerosos de curiosidades, de exploração, da criança estar o tempo todo em atividade, aquela teoria da criança ser “sujeito ativo do conhecimento”. Até porque, ainda bem, elas não param quietas. Esse aspecto que para uns é negativo, é o verdadeiro termômetro do seu trabalho; se o ambiente for favorável, a criança vai parar e ouvir, e participar. Com bebês não tem argumento, não há ordens. Ou o professor oferece momentos significativos ou o trabalho não acontece. Assim, os bebês “salvam” a literatura, os bons momentos de leitura, ricos em imaginação, curiosidades e emoções. Se não for assim, eles simplesmente viram as costas. Obrigar a participar de alguma atividade? Isso não existe. Quem conhece criança nesta idade sabe: é choro, berros e gritos na certa!
Você costuma trabalhar, com esse mesmo público infantil, a sensibilização para a escrita. Como isso é feito?
Utilizo muito livros só de imagens, como os da Eva Furnari. Uma vez reproduzi as imagens em tamanho grande, uma folha de cartolina para cada imagem. Colei-as na parede na altura das crianças. Diariamente permiti que interagissem, fiz questionamentos e provoquei a reflexão sobre os fatos desenhados. Depois, sentei com as crianças e fui escrevendo, embaixo dos desenhos, o que eles iam relatando. Em outros momentos reli os escritos para elas. Assim é possível desenvolver a percepção de narrativa com as crianças, já nesta idade. Até que se trabalhe com elas, já costumam nomear objetos e identificar fatos isolados.
Até aqui, você contou da sua experiência no CEI, mas agora você está na coordenação pedagógica de uma EMEF. Como está sendo?
Agora estou na coordenação pedagógica de uma EMEF, tentando multiplicar o que aprendi com os pequeninos. Porém estou em um grande conflito. No CEI não há biblioteca ou sala de leitura. Assim, pensamos em criar estes espaços de leitura em todas as salas, oferecendo livros o tempo todo e desenvolvendo um trabalho de leitura por todos os professores. Paradoxalmente, foi o fato de não haver uma biblioteca o que permitiu que as crianças passassem o dia todo, brincando, interagindo, dormindo e acordando entre livros. Mas na EMEF há uma sala de leitura e há um professor designado a só trabalhar a leitura, desvinculada de conteúdos e atividades escolares. Estou em dúvida: preciso trazer este trabalho de mediação de leitura para todos os professores? Eu estaria desvalorizando o trabalho da professora da sala de leitura, que é qualificada e faz bem o seu trabalho? Estaria eu desvalorizando o trabalho do professor de sala de aula, que tem outras aprendizagens a oferecer aos alunos, e que não são menos importantes? Ainda não encontrei repostas. Assim como aprendi com os bebês, começo uma jornada de reflexão, investigação destas respostas, acreditando nos resultados positivos. Que eu possa agora pensar na leitura dentro do espaço de uma EMEF, considerando suas características, particularidades e necessidades. Já sei que o caminho é a observação atenta, as tentativas. É a própria escola que vai me dar as respostas, assim como os bebês me deram.
Milena Augusto dos Santos tem 27 anos e é formada em Pedagogia desde 2005. Mas, tendo cursado o antigo Magistério, leciona desde 2003. Atuou por dois anos em uma escola particular e, nos quatro anos seguintes, foi educadora em um Centro de Educação Infantil (CEI) da Prefeitura de São Paulo. Há um ano atua como Coordenadora Pedagógica na mesma rede.
Equipe responsável: Instituto Ecofuturo
Entrevista e estabelecimento de texto: Reni Adriano