30 maio

Uma aula de narrativa em Monteiro Lobato

Noventa anos se passaram, desde a criação de A Menina do Nariz Arrebitado. Mas, quando o assunto é a arte de narrar, viva Monteiro Lobato!
Vejamos uma sequência exemplar de Reinações de Narizinho, quando as personagens se reúnem para fabular, contar histórias que se incorporam à própria vida.
I: “A história do gato”
À noite é o ilustre gato quem toma a vez de contador de histórias. Começa muito sedutor, dizendo-se “cinquentaneto” do gato de Botas. Além disso, o seu avô chegou à América à bordo do navio de Cristóvão Colombo, aportando numa terra cheia de palmeiras. Neste ponto a intervenção de Emília é hilária e de uma intertextualidade exemplar, referindo-se implicitamente à “Canção do Exílio”: “Então era o Brasil! […] Aqui é a terra das palmeiras com sabiá na ponta!”.
A história vai crescendo até Colombo encontrar uns índios, que teriam dito: “Estamos descobertos, rapaziada! Este é o tal Cristóvão Colombo que vem tomar conta das nossas terras. O tempo antigo lá se foi. Daqui por diante é vida nova – vai ser um turumbamba danado…”.
Agora é o Visconde quem intervém. E aparece o conflito entre “história oficial” e as outras histórias… O sábio acha um disparate ser contada assim a história da América, afinal ele leu um grande livro de D. Benta sobre o assunto! Mas Emília, que está adorando o que o gato conta: “Não está inventando nada! […] Foi assim mesmo. O livro não esteve lá e não pode saber mais do que o avô de seu Félix, que esteve presente e viu tudo”.
Estão todos seduzidíssimos pela história do gato. Tanto que em outro momento o gato vai parar no estômago de um tubarão, que é pescado e ao ter a barriga aberta pelos pescadores, deixam-no escapulir… O Visconde intervém novamente, ao que Emília garante que nada há de inverossímil nisso, uma vez que todo mundo acredita na bíblia, naquela história de Jonas. O Visconde diz que Jonas é diferente, por ser profeta… Emília, que adorou saber que o gato Félix mora num quadragésimo andar e está maravilhada com a palavra, revida: “Jonas era profeta e seu Félix é quadragésimo. Dá na mesma”. E… “todos acharam que Emília tinha razão”.
Mas a história começa a degringolar… O gato começa com um tal de “andei, andei, andei…”, à procura de tal lugar em que o demo perdeu as botas… Pergunta pra um, pra outro, pra outro, pra outro… Exaustivamente, a ponto de nem Emília ter mais paciência. E o pior é o desfecho dessa história que ia tão bem (até os leitores seguramente ficam desapontados):
“– E aí? – indagou Emília, que estava achando aquela história muito sem jeito.”. Gato Félix: “Aí eu… eu… parei de procurar a tal terra e fui cuidar de outra coisa”.
O desapontamento é geral.
Emília tem uma fala ótima para pensarmos a habilidade narrativa de que muitos são dotados. Impossível não pensar no nível de um Walter Benjamim – sem nenhum exagero. E nem de um Proust, defensor da capacidade de contar histórias sem ter saído do lugar:
“Não valeu a pena ter vindo de tão longe para contar uma história tão sem pé nem cabeça. Eu, que nunca saí daqui, sou capaz de contar coisa muito mais bonita”.
E de fato será ela a contadora do próximo serão.
Antes, mais um comentário: Emília diz nunca ter saído do Sítio… Claro! Pois não… Faz de conta… Mas – faz de conta que ela realmente nunca saiu, ou faz de conta que já esteve no palácio das abelhas, confabulando com as formigas ruivas e no Reino das Águas Claras?…
II: “A história da Emília”
Enquanto isso, pintinhos desaparecem no galinheiro do Picapau Amarelo. O Visconde, que andou embrulhado num folheto das Aventuras de Sherlock Holmes se encarrega de descobrir o ladrão. Ninguém vai entrar no mérito de quem seja esse Sherlock, nem Sir Arthur Conan Doyle será citado – por ora basta vermos o desenrolar da história do furto dos pintinhos e sabemos do que se trata. Afinal, nem todas as histórias podem ser contadas num único livro. Ou ainda: há diferentes formas de se contar uma história e a de Sherlock Holmes que ora nos contam é desse modo bem original – não é contada, mas vivida.
“Era uma vez um rei”. Nesse ponto a boneca já é interrompida, Narizinho já implicando que sabia que tinha rei na história, pois que “Emília vive com a cabeça entupida de reis, príncipes e fadas”. Então, a boneca recomeça: “Era uma vez um ‘rei’, um ‘príncipe’ e uma ‘fada’”! A provocação revela já de entrada a sua capacidade de improvisar nas histórias…
A história de Emília é linda, cheia de delicadeza e humanidade – e o que há de mais valioso no contexto de sua história é precisamente um bom coração! Não é ela a acusada de não ter esse “órgão” tão vital? Pensemos… Nós que já sabemos da função das histórias na humanização de Emília, devemos nos perguntar se não é também contando uma “história de coração” que a boneca vem de fato a ter um…
Mas os corações mais generosos, como nos melhores contos de fada, também sabem ir à desforra dessas maldades gratuitas que circulam pelo mundo… E coração para isso – ah, Emília tem… E como!
Antes: quem é o vilão? Uma madrasta? Não. Ou melhor, uma má madrasta. Quem teria pensado que para a boneca, como de ordinário acontece nos contos de fada, todas as madrastas são más?!
E vem o castigo:
“Miserável! […] Quem merecia morrer eras tu, mas vou virar-te num horrendo sapo de cidade”. Pausa. O que vem a ser isso, marquesa? Sapo não é sapo em qualquer lugar?!
Bem:
“É que nas cidades há muitos moleques que gostam de judiar dos sapos, de modo que sapo de cidade padece mais”.
Ah!…
E não é que contando uma história a boneca de asneirenta de nascença vai se tornando inteligente? Narizinho o reconhece:
“Já reparou, vovó, como Emília está ficando inteligente? Não é mais aquela burrinha de dantes, não…”.
Palmas para a marquesa.
Só o Gato Félix, despeitado, não gostou. E tanto irrita a boneca que esta lhe arranca um fio do bigode. E a essa altura, isto é, depois daquele desastre da história do gato, Emília, que enquanto se manteve encantada o defendeu, agora não crê nele mais: “Você não é americano, nem nasceu em nenhum arranha-céu, nem é parente do Gato de Botas, nem foi engolido por tubarão nenhum”. O deslize do gato foi no final da história, notem. Mas é o quanto basta para desqualificar mesmo o começo, que estava sendo genial…
A seguir veremos que a falha narrativa do gato implicará drasticamente numa falha identitária.
III: “A história do visconde”
Por enquanto “visconde” não é nome próprio. O “sabinho” ainda está se revelando – portanto, só mais tarde viria a ser “Visconde” com letra maiúscula.
E que revelação! Sabugosa começa: “Meus senhores e minhas senhoras!”. Quando intervém o Gato Félix: “Isso nunca foi história, senhor visconde! Isso chama-se discurso e muito bom discurso”.
O gato é despeitado, sabemos, mas nisso está coberto de razão. Contudo o visconde ainda não discursou, por enquanto faz uso da função “fática” da linguagem – quer dizer, apenas prepara o auditório para a fala principal, chamando a atenção dos presentes. Portanto, quando o gato diz se tratar de “muito bom discurso” naturalmente se refere à maneira absolutamente apropriada do primeiro enunciado, que não deixa dúvidas de que o que vem a seguir só pode ser discurso e jamais uma história ou outra coisa.
Mas quem disse que o visconde vai contar uma história ou fazer discurso? Diz: “Não é discurso, não, senhor gato! É outra coisa, e quem vai explicar o que é não sou eu e sim aquela senhora vassoura, ali ao lado de tia Nastácia…”.
É fantástico que justamente no espaço que lhe é dado para contar uma história é que o visconde se afirma em sua personalidade: nunca será um contador de histórias, tampouco um orador – o “sabinho” sabugo se afirma desde já como cientista; logo, o que pode fazer como tal só pode se chamar… demonstração!
E o que o sábio demonstra, afinal? Ora, que o suposto Gato Félix não passa de um impostor ladrão de pintinhos! A prova irrefutável está na comparação entre um pelo de gato encontrado no galinheiro e aquele fio de bigode arrancado pela Emília…
(Essa sequência genial em três capítulos espanta por conter tanta coisa com tamanha sutileza e eficácia).
Em tempo: a vassoura à qual o sábio se referiu em resposta ao gato se explica nas vassouradas com que tia Nastácia expulsa o ladrão definitivamente do Sítio.
Equipe responsável: Instituto Ecofuturo
Texto: Reni Adriano

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