20 nov
Secretária-geral da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil fala ao Dia Nacional da Leitura
Elizabeth D’Angelo Serra é secretária-geral da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil – FNLIJ, desde 1989. Pedagoga, foi consultora de programas de TV sobre literatura infantil e juvenil e leitura, destacando-se o programa Livros Animados, do Canal Futura. À frente da FNLIJ, é responsável pela criação e coordenação de projetos de promoção de leitura literária para crianças e jovens, com destaque para o Salão FNLIJ do Livro para Crianças e Jovens, iniciado em 1999, o concurso Melhores Programas de Incentivo à Leitura, já na sua 17ª edição, e a coordenação do Prêmio FNLIJ para os melhores livros publicados no Brasil para o setor. Paralelamente ao trabalho na FNLIJ, coordenou, de 1996 a 2002, o Programa Nacional de Incentivo à Leitura – PROLER, da Fundação Biblioteca Nacional e, em 2003, dirigiu a Biblioteca Púbica do Estado do Rio de Janeiro. Por duas vezes, em 2000 e 2004, a carioca de 66 anos ocupou o cargo de Vice-presidente do Comitê Executivo do International Board on Books for Young People – IBBY, órgão que a FNLIJ representa no Brasil, tendo participado de júris internacionais, congressos e feiras de livros infantis.
Orientadora das seleções de livros para o projeto Bibliotecas Comunitárias Ler é Preciso do Instituto Ecofuturo, Beth Serra conversou com o Dia Nacional da Leitura. Nesta entrevista exclusiva, focamos principalmente em seleção de acervos para biblioteca públicas e escolares. Confira.
Quando falamos em seleção de acervos para bibliotecas públicas e bibliotecas escolares, quais as diferenças e semelhanças que devem ser observadas?
A diferença principal é o local e, consequentemente, a clientela, já que a qualidade e a variedade do acervo e sua organização devem estar presentes em ambas. A semelhança é quanto à função social da biblioteca. Independente do local, a biblioteca pressupõe um acervo de livros e outros materiais escritos devidamente organizados, para fácil recuperação pelo leitor. Em nosso país, a organização dos livros nas bibliotecas, determinante para o seu uso coletivo, não é respeitada nem valorizada pela escola. No entanto, é a organização técnica que possibilita que os livros lidos voltem para seus lugares e possam ser recuperados e lidos por outros leitores.
A escola tem obrigação de ensinar a seus alunos a utilidade de uma biblioteca para a manutenção da habilidade de ler – desenvolvida no período escolar –, valorizando também a organização dos livros e explicando que é na biblioteca pública que o aluno poderá continuar a ter acesso a livros e a outros materiais para leitura.
A biblioteca pública deve oferecer variadas oportunidades de leitura aos seus diferentes usuários. Desde livros de gêneros e assuntos diversos até revistas e jornais. Ela também pode oferecer informações de utilidade pública para os cidadãos, principalmente em comunidades carentes desse tipo de serviço.
A biblioteca da escola (prefiro chamá-la assim, ao invés de biblioteca escolar, para marcar e reforçar a sua identidade com o conceito universal de biblioteca e para descaracterizar o seu uso exclusivamente didático, escolar), deve ser considerada como o coração da escola, alicerce para a formação de leitores, tarefa da escola e de seus professores. É na biblioteca da escola onde os alunos e professores devem buscar – e encontrar – livros de literatura para satisfazer seus desejos diferenciados de leitura de ficção, como também de livros informativos, de arte e revistas. É nela que se aprende a usar – e a reivindicar – bibliotecas públicas de qualidade para todos.
Também é importante ressaltar que a biblioteca da escola deve ter como responsáveis, atuando em parceria, no mínimo um professor e um bibliotecário, ou alguém que tenha feito o curso de técnico em biblioteconomia.
No caso das bibliotecas escolares – ou biblioteca da escola, se a senhora prefere –, quem é responsável pela formação e atualização do acervo e como isso deve ser feito?
Como não temos uma cultura de uso de bibliotecas e não há um sistema de bibliotecas escolares no país, dentro dos moldes internacionais, a formação e atualização dos acervos, no caso das escolas públicas, ocorrem de formas diferentes, sem um critério comum. Dependendo das políticas de cada estado e/ou município (que devem prever recursos para tal), são diretores e professores de sala de leitura ou bibliotecas os responsáveis pela formação dos acervos.
Um grande número de professores compromissados com um projeto em que a leitura variada e de qualidade é instrumento básico da educação busca, por movimento próprio, meios informais para compor seus acervos, sendo o mais comum as doações, o que revela a fragilidade do tema na educação brasileira.
O governo federal tem, há quase 30 anos, um programa de compra de livros de literatura para as escolas que, somente no final dos anos 90, passou a atender a todas as escolas públicas do ensino básico, com ou sem bibliotecas. Como se trata de uma compra gigantesca, a seleção desses livros, atualmente, é feita pela Universidade e é comum a todas as escolas do país.
A partir de 1998, o nome do programa passou a ser Programa Nacional Biblioteca da Escola – PNBE, inserindo, formalmente, pela primeira vez, o nome e o conceito da biblioteca na realidade da escola pública brasileira. Até então a referência para o espaço que reunisse um acervo de livros de literatura nas escolas públicas era (e ainda o é, na maioria delas) conhecido como Sala de Leitura, o que fragilizou a importância de ter bibliotecas nas escolas.
A partir dessa ação de compra de livros de literatura do governo federal, alguns estados e municípios também passaram a destinar, anualmente, verbas com o mesmo fim para suas escolas do ensino fundamental. Essas compras têm ocorrido de forma centralizada pelas secretarias de educação, como também em feiras de livros pelos professores, que recebem verba específica para esse uso. Algumas escolas já partilham essas escolhas com seus alunos.
Cito a experiência do município do Rio de Janeiro com quem a FNLIJ tem parceria antiga na área de formação de leitores. A Prefeitura da cidade destina, há mais de 10 anos, verba específica para compra dos livros de literatura na Bienal do Rio e no Salão FNLIJ do Livro para Crianças e Jovens, ação que se constitui como parte da política de formação de leitores da secretaria de educação. A maioria das escolas do município partilham com professores e alunos a escolha dos livros a serem comprados, nesses eventos, para as salas de leitura e bibliotecas.
Ainda sobre essa modalidade de biblioteca: os professores devem participar da seleção dos livros? Neste caso, como professores, bibliotecários e profissionais responsáveis por bibliotecas podem se manter atualizados sobre novas publicações de interesse do seu acervo?
Quando a leitura na escola é considerada como prática social relevante para além do estudo da gramática e de conteúdos das matérias, professores de sala de aula e das bibliotecas ou salas de leitura, bibliotecários (raros em escolas) e alunos, participam da seleção de livros, se constituindo como parte integrante do projeto político-pedagógico da escola. Essa sem dúvida é uma conquista importante que merece ser creditada aos esforços de inúmeros professores do país que acreditam na força da leitura e da literatura para a educação de seus alunos.
A seleção partilhada não deve ocorrer somente quando chegam os recursos para compra de livros, mas como um processo permanente de uma escola que valoriza a cultura escrita e a formação de leitores e, por isto, está sempre trocando experiências e necessidades, constatando a falta de determinados livros, desgastes de outros, se atualizando sobre a produção editorial, procurando atender aos interesses de todos, alunos e professores.
Com a internet, a tarefa para se atualizar quanto aos títulos disponíveis no mercado tornou-se mais fácil. Hoje é possível consultar os sites das editoras e de autores.
Restam, porém, dois desafios: adequar as escolhas ao orçamento, e essa escolha atender ao critério de qualidade e não o da quantidade.
A produção editorial brasileira é enorme e o número de títulos novos por ano é grande, sendo impossível a tarefa de um só leitor conhecê-los. Portanto, a tarefa de selecionar livros deve ser feito em equipe.
Um grupo formado por professores habituados a frequentar livrarias, ler suplementos em jornais, acompanhar os diversos prêmios nacionais e internacionais vai levar vantagem ao selecionar os livros para sua escola e seus alunos. Principalmente se forem professores estudiosos e leitores atentos de literatura.
A FNLIJ, desde 1974, elege os melhores livros para crianças e jovens e a lista está disponivel no site www.fnlij.org.br.
A Câmara Brasileira do Livro, que premia com o Jabuti, também é fonte importante para a seleção de livros, além de outros prêmios nacionais e internacionais.
A visita às feiras de livros, feiras literárias e bienais de livros, em número cada vez maior, é presença obrigatória, profissional, para aqueles que têm a responsabilidade de constituir e atualizar acervos de bibliotecas, das escolas e das públicas.
Como identificar os anseios de uma região ou comunidade, de modo a se formar um acervo a partir dessas demandas?
Entendo que o trabalho inicial de uma biblioteca é disponibilizar livros que compõem um acervo básico de títulos consagrados, nacionais e internacionais (nesse caso com traduções de qualidade), além de livros de autores contemporâneos, informando a comunidade sobre esse acervo.
Para isso, podem ser organizados encontros, leituras, exposições, palestras divulgando os títulos disponíveis por meio de folhetos, distribuídos gratuitamente, bem como divulgar pela internet. As mídias sociais exercem hoje um novo e importante papel para informar e convidar a comunidade a participar da biblioteca.
O acervo dos clássicos, que a maioria da população não conhece, em geral por falta de oportunidade, representa a cultura universal, patrimônio a que todos têm o direito de usufruir, linha de base da cultura escrita, cujo acesso deve ser garantido, por meio das bibliotecas. O responsável pela biblioteca deve buscar meios de apresentar e sugerir essas leituras, respeitando o interesse dos usuários.
A partir deste patamar básico de livros e da promoção de suas leituras, os responsáveis pela biblioteca devem planejar meios para estabelecer um contato permanente com os usuários da biblioteca, convidando-os a opinarem sobre que títulos gostariam de ler e de ter na biblioteca.
Promover encontros com a comunidade para falar sobre a função social da biblioteca possibilita a realização de pesquisas para conhecer quais os interesses temáticos da comunidade e então procurar especialistas para escolher os melhores títulos nas áreas escolhidas.
Além dos livros demandados por usuários de bibliotecas, o que mais deve constar de um acervo?
Considerando que o acervo de uma biblioteca está sempre em construção e que é o uso da comunidade que vai dar vida a ele (acervo) e a ela (biblioteca), são os seus usuários, na medida em que se envolvem nessa construção, que poderão dizer como deve ser feita a ampliação do seu acervo. Seja para aumentar o número de títulos nos temas já existentes, como para focar em aspectos diversos de interesse particular da comunidade. O papel dos responsáveis pela biblioteca é conduzir esse debate de forma compartilhada sem se omitir, como profissionais, a dar sugestões.
Hoje em dia a internet é instrumento de trabalho e caminho para buscar informações, para qualquer pessoa e sem dúvida ela deve estar disponível nas bibliotecas com banda larga e computadores novos.
Porém, acreditando que o domínio da cultura escrita, que vem com a prática da leitura de livros de literatura, é que forma internautas críticos, capazes de melhorar a própria vida e da sua comunidade, é que defendo que a biblioteca não deve apresentar o uso da internet e dos jogos em computadores como atrativos principais. Esse é um tema que deve estar sempre na pauta de uma biblioteca e discutido com os seus usuários.
A senhora tem acompanhado os desdobramentos da lei 12.244/10, que determina a implantação de biblioteca em todas escolas do país até 2020? Quais as suas expectativas quanto a isso?
A existência de bibliotecas nas escolas é uma bandeira antiga da FNLIJ desde sua criação há 44 anos. O projeto Ciranda de Livros, criado pela FNLIJ em 1982, plantou a semente da biblioteca na escola pública com livros de literatura. O Salão FNLIJ do Livro para Crianças e Jovens, desde sua criação, em 1999, tem bibliotecas como espaços de destaque para receber os alunos, professores, filhos e pais, além do público em geral.
Assim, tão logo a lei foi assinada, em maio de 2010, a divulgamos com destaque com o objetivo de torná-la conhecida, valorizada e defendida por pais, professores e alunos.
Porém, sabemos que somente a lei não é suficiente para mudar o quadro de ausência de bibliotecas nos sistemas de ensino do país. A força da lei para se tornar realidade vai depender, principalmente, da mobilização da sociedade, que para isto precisa compreender a sua importância para a educação de nossas crianças e jovens. Portanto, sua aplicação depende, principalmente, de nós, pais, professores, bibliotecários, famílias e escolas diretamente interessados no assunto, motivo suficiente para nos engajarmos na sua divulgação em escolas, universidades, bibliotecas, cursos de formação de professores e de bibliotecários.
A proposta da campanha Eu Quer Minha Biblioteca, criada pelo Instituto Ecofuturo, abraçada pela FNLIJ, além de outros importantes parceiros, tem clareza sobre a necessidade e a importância dessa mobilização nacional para que a lei possa contribuir para um avanço de qualidade na educação básica do país, ao incluir a biblioteca da escola e a formação de leitores como parte da discussão maior sobre a escola pública. Creio que o Ministério Público deve ser um grande aliado para que a lei seja cumprida por sua importância social.
Em bibliotecas de escolas que ainda não possuem bibliotecários – que também é uma exigência da lei 12.244/10 –, quais as medidas alternativas que uma escola pode tomar para manter a biblioteca em funcionamento satisfatório, enquanto não se resolve esse déficit?
Já existem soluções no país para enfrentar as dificuldades de criar bibliotecas nas escolas como a falta de bibliotecários formados para tal. São ainda poucas, mas elas provam que é possível quando se tem vontade política e determinação para vencer desafios.
Quando uma secretaria de educação está convencida do papel relevante da biblioteca da escola na educação básica que oferece aos seus alunos, e a diretoria da escola e os professores também, as soluções para enfrentar os problemas que impedem o seu funcionamento aparecem.
Cito como exemplo a secretaria de educação de São Bernardo do Campo, no ABC Paulista, que investiu em bibliotecas nas escolas contando com um departamento de bibliotecas escolares, realizando um belo trabalho.
A exigência de um profissional bibliotecário é da classe de bibliotecários. Porém, há uma responsabilidade dos professores e das secretarias de educação que não se esforçam para enfrentar e discutir o problema. Acredito firmemente que na medida em que bibliotecários e professores sentarem à mesa para pensar juntos uma solução, ela surgirá. Mesmo que seja uma solução intermediária, já que a exigência da lei é parte de um processo que implica em mudanças culturais e estruturais maiores.
Um dos motivos desse meu otimismo é que estamos falando em educação de nossos filhos e de direitos democráticos e tanto bibliotecários e professores conscientes disto saberão como resolver o impasse. Acredito no bom-senso desses profissionais como cidadãos.
O outro motivo é que apesar de a Biblioteconomia, em geral, não promover a formação de bibliotecários para atuarem em bibliotecas nas escolas, não tendo, ainda se pronunciado com ênfase sobre o assunto, sabemos da existência de bibliotecários envolvidos para mudar esse quadro. Seja de forma pessoal ou em pequenos grupos prestando apoio técnico para a organização dos acervos ou fazendo parte do projeto para que a biblioteca da escola se torne realidade.
A oferta de leitura de obras literárias deve ser a principal medida a se tomar para a formação plena de leitores? Por quê?
Os livros didáticos não formam leitores críticos e livres capazes de questionar, refletir e pensar e assim contribuírem para a melhoria da própria vida, da comunidade e do país.
Ao contrário, a literatura possibilita o contato íntimo e de qualidade com a cultura escrita e por isto forma leitores. É ela que irriga o pensamento, as ideias e a imaginação com palavras, escritas de forma original e única, pelos escritores-artistas da palavra, proporcionando, além do contato com a riqueza da língua, visões diversas sobre a vida, as pessoas e as diferentes culturas, nos fazendo pessoas melhores ao entender e conhecer os outros e a nós mesmos. A literatura, diferentemente do livro didático ou dos livros de autoajuda, não nos dá respostas, favorecendo a livre interpretação. É a dúvida que nos faz criar e crescer.
Jella Lepman, alemã que criou o IBBY, nos anos 50, organização que a FNLIJ representa no Brasil, o fez acreditando que os livros para crianças e jovens – ficção e informativos – formam uma ponte que liga crianças de todos os países em nome da paz, criando também a Biblioteca da Juventude, em Munique, na Alemanha.
É nesse sonho – que une hoje mais de 70 países – que acreditamos. E nele, a biblioteca – da escola e a pública – é a morada dos livros a serem partilhados por todos na esperança de estarmos contribuindo para um mundo melhor e mais justo.
Equipe responsável: Instituto Ecofuturo
Entrevista e estabelecimento de texto: Reni Adriano