01 maio
Por aqui passa a vida
Cidades nascem e morrem. Temos a impressão de que são eternas, pois seus ciclos de vida são longos, mas muitos agrupamentos humanos começaram e desapareceram, na história do homem. Há cidades encontradas já vazias, como Macchu-Picchu, no Peru, outras apenas são abandonadas, como Bodie, nos EUA, e Fordlândia, no norte do Brasil, ou inundadas, como Epecuén, na Argentina.
Em ‘As Cidades Invisíveis’, Ítalo Calvino cria histórias sobre modos de agrupamento humano. Este livro, pequeno e imenso, se bem compreendido, vale por uma pós-graduação em estudo das cidades. Influenciou gerações de arquitetos urbanistas, mas não serve somente como exercício de descrição das cidades e suas morfologias possíveis: trabalha em nós, leitores, a memória afetiva das cidades pelas quais passamos ao longo da vida: seu traçado, seus habitantes, sua luz, seus cheiros, seus ruídos. Fragmentos de cotidiano.
Pois uma cidade é isso: um aglomerado mais ou menos artificial de elementos, agrupados entre si em algum momento da linha do tempo, para que o cotidiano do homem seja facilitado, para que as atividades possam ser desenvolvidas coletivamente, e a proximidade entre coisas e pessoas torne a vida mais fácil. Para que o saber de ofício de um possa ser aproveitado pelo outro, para que a cesta que um homem tece possa ser trocada pelo pão que o outro assa, para que as crianças possam ser reunidas e ensinadas pelos professores, para que a água trazida do rio possa ser distribuída entre os que têm sede, em vez das mães terem que buscar água na beira do rio. Para que após o esforço do dia exista um local para que as pessoas possam se reunir e celebrar juntas o trabalho que terminou. Ficamos tocados com essa visão pura das cidades como ponto de celebração da vida humana em coletividade.
Pena que essa visão idílica, essa cidade cordial, não exista de fato. Ao abrigar a diversidade das atividades humanas, a cidade é o palco do conflito. E o termo ‘palco’ não surge à toa: o teatro, em suas origens, é uma extensão do cotidiano, e sua cenografia, uma extensão da construção da cidade, para que se reproduzam e discutam os conflitos humanos e se possa de algum modo tratá-los, com humor, catarse ou reflexão. Assim se vive nas cidades.
Um dos fatores importantes na escolha do homem para o estabelecimento de uma cidade está na proximidade dos recursos naturais, principalmente a proximidade com fontes de água. A água trazida do rio, a água que transporta coisas, materiais e notícias, a água que irriga a lavoura. Ao mesmo tempo, quando uma cidade cresce, a proximidade com as fontes de água potável passa a ser um dos principais problemas: a água passa a receber coisas que a cidade não quer. É um ciclo: na ausência de sistemas de esgoto, em algum momento os rios passam a ser usados para esse fim. A partir do crescimento da cidade, o rio não consegue mais se renovar sozinho, os processos biológicos naturais de recuperação passam a ser ineficientes. A medida que a qualidade do rio piora, as pessoas se afastam do uso cotidiano. O afastamento vai fazendo com que o rio perca a importância, então passa a ser cotidiano jogar lixo no rio. E esse ciclo segue: o rio cada vez mais sujo, e a cidade cada vez mais distante. Até que o rio deixa de ser visto como um elemento natural, como uma floresta, ou uma montanha: passa a ser apenas um destino para os restos da cidade, e algo a ser transposto.
Muitas cidades, em algum momento de sua história, destruíram os cursos d’água aos quais estavam ligadas: Londres poluiu o Tâmisa, , Roma poluiu o Tibre, São Paulo poluiu e canalizou o Tietê. Esta destruição, embora recorrente, e praticamente inevitável, é um processo reversível. A complexidade desta destruição (e a possibilidade de recuperação dos cursos d’água) depende da relação que a cidade tem com eles. Descontadas as diferenças de investimento em saneamento, cidades que mantiveram seu cotidiano ligado ao rio (ou seja, cujas atividades dependem do rio e incluem o rio como elemento presente na vida da cidade) tendem a ter mais facilidade na recuperação dos cursos d’água, como é o caso de Londres. Outras, onde o rio foi isolado de alguma forma, seja pelo desaparecimento de sua utilidade como transporte, seja pelo isolamento causado pelo sistema viário, têm mais dificuldade, como é o caso de São Paulo. O filme ‘Entre Rios’, de 2009, mostra muito bem como esse processo ocorreu na cidade. Veja no link http://vimeo.com/14770270.
Os cursos d’água menores, dentro do tecido da cidade, ainda mais desprestigiados, tendem a ser transpostos não por pontes, mas pelo tamponamento. A cidade não apenas isola o rio do cotidiano: ele é oculto, fechado, passa a correr no subsolo da cidade, aprisionado. A cidade passa por cima dele, como se ele deixasse de existir. Mas eles reaparecem quando chove, e a água, que não tem por onde se infiltrar no solo, começa a encher seu canal.
Quando a cidade impermeabiliza a superfície, o único destino da água das chuvas são os rios. E onde estão os rios? Não estão mais lá, estão embaixo da cidade. Mas a água escoa, e encontra o rio que está lá embaixo. E o nível do rio sobe: a cidade inunda. E na imprensa, a manchete descreve: tal avenida transformou-se em rio após a chuva. Sem lembrar que antes de ser avenida, ali passava um rio. Alguns rios desaparecem, com as nascentes sufocadas pelas fundações dos edifícios. Simplesmente morrem.
As grandes cidades brasileiras, que já passaram por estes ciclos, servem como exemplos para que não se repitam os mesmos erros nas cidades menores, ainda em expansão, que certamente, em futuro breve, enfrentarão os mesmos problemas. Espera-se que não cheguem mesmo a passar pelos ciclos completos: a educação ambiental, o acesso aos conceitos recentes de sustentabilidade, e a compreensão sobre a rede de relações que compõem a vida no planeta, devem formar gerações mais preocupadas em evitar as crises ambientais do que em remediá-las. O exemplo do rio Cheonggyecheon, em Seul, na Coréia, que em 2005 foi destamponado, despoluído e transformado em parque, correu o mundo como uma solução possível. Movimentos em muitas cidades pretendem fazer os habitantes voltarem a enxergar estes elementos naturais, para que eles voltem a fazer parte do cotidiano.
Preocupar-se com essas questões não significa reproduzir discursos ambientalistas gastos de repúdio à vida nas cidades, como se fosse possível que todos voltássemos a um éden inexistente. Freqüentando congressos e seminários, ainda é comum encontrarmos quem defenda esse retorno absoluto e literal à natureza, sem perceber que somos bilhões no planeta, e só a infraestrutura das cidades tem capacidade de resolver as questões dessa imensa população. Em 2008, pela primeira vez na história, o número de pessoas em áreas urbanas na Terra igualou-se ao número de pessoas em áreas rurais.
Estima-se que, em 2050, 70% da população mundial estará nas cidades. A cidade tem que ser repensada, não abandonada.
Acreditar neste futuro menos cinza, portanto, não é ser otimista demais, desde que se continue propagando a consciência da responsabilidade compartilhada. O cuidado com a vida na Terra em seus aspectos mais singelos e frágeis não está tão longe quanto imaginamos. A ciência contribui, oferecendo tecnologias e soluções. Todos estamos mais atentos: há uma rede em formação.
Autor: Alessandro Sbampato