24 mar
Guardar Vida
Guardar uma coisa é olhá-la, fita-la admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, é fazer vigília por ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela, estar por ela ou ser por ela.
Por isso, melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que um pássaro sem vôos.
Antonio Cícero
Como lembrar o rosto de alguém querido? Um rosto que nos fita diretamente é diferente de uma face que nos fala de perfil. Para falar olhando no fundo dos olhos é preciso deter-se. Ver o contorno do rosto de alguém que se desloca e sempre se esquiva, é diferente, pressupõe um andar. Como será que eu falo? De soslaio, baixinho? Na correria? Direta e pausadamente? Como será recordado o meu próprio rosto?
Domingo, tarde tranquila. Fechei o livro Norwegian Wood, de Haruki Murakami, e suspirei, aguardando um tempo para refletir. As belíssimas cenas de idílio por ele descritas, imediatamente me remeteram a minha própria vida. À leitura de meus dias. À maneira como capturo as faces das pessoas em minha memória e vice-versa. Senti o desejo maluco de listar as formas como falam meus amigos. Classificá-las para compreendê-los melhor. Em seguida associar as vozes à musicalidade. Anotar fragmentos de diálogos passados. Ri de minha própria loucura. Finalmente, suspirei mais uma vez, reconhecendo o texto de um mestre, tomada pelo prazer imenso de compartilhar da sensibilidade e sabedoria de um escritor excepcional. Daquele momento em diante, as conversas, dentro de mim, aconteceriam segundo um novo registro. Este é um dos ofícios da escrita: oferecer múltiplas maneiras para guardar a vida.
Para o semioticista Paul Zumthor, somos seres de narrativa. Narrar sendo uma tentativa de reter um pedaço real do passado. “Todos nós percebemos nossa vida através de uma ficção – e essa ficção é nossa vida”. Arrisco aqui acrescentar que o passado, para quem consegue a leitura em profundidade, prenuncia portais futuros, liberta do ciclo de repetições aumentando a coragem de assumir caminhos pessoais e intrasferíveis. Há que se valorizar, portanto, “a inteligência poética, o pensamento analógico”, a capacidade de encontrar e desvendar a multiplicidade de signos que imprimem à vida o gosto do saber e o gosto de saber. A riqueza existe nos olhos de quem consegue percebê-la. Quanto mais beleza se tem aptidão para capturar por meio da percepção poética, menor a necessidade de suprir faltas, desejos insaciáveis, maior a possibilidade de fruir e cuidar da própria existência, sempre tão fugaz. Ao mesmo tempo, é como se houvesse um aumento da vontade de compartilhar, de dizer a vida, usufruir da companhia do universo.
Se a vida é um texto a ser desvendado, é também uma narrativa a ser contada e reinventada a cada momento. Momentos de sonho ou pesadelo, entre prazeres e dores, os dias fluem e a voz literária tenta “amarrar os laços com uma porção de realidades que escapam à nossa atenção despertada”. A palavra poética é primordial, com ela “guarda-se o que se quer guardar”.
Bibliografia:
Guardar – Antonio Cicero – Record – 1996 – Rio de Janeiro
Norwegian Wood – Haruki Murakami – Alfaguara – Editora Objetiva – 2008 – Rio de Janeiro.
Escritura e Nomadismo – Paul Zumthor – Atelie Editorial – 2005 – São Paulo.
Autora: Heloisa Prieto