26 nov
Dois Irmãos na biblioteca: um encontro com Milton Hatoum
No quarto módulo do Programa Viagem Literária, realizado em outubro de 2010, a Biblioteca Municipal de Diadema recebeu o escritor amazonense Milton Hatoum.
Numa conversa agradável com uma plateia atenta, Hatoum comentou a sua formação como leitor. “A minha geração deve ter sido uma das últimas que ainda puderam estudar em escola pública de qualidade”, disse. Foi no Colégio Estadual do Amazonas que ele teve os primeiros contatos com a literatura brasileira, através de obras de Graciliano Ramos e Érico Veríssimo, e com a literatura estrangeira, ao descobrir Três Contos de Gustave Flaubert, dos quais o conto “Um Coração Simples” o marcou profundamente. “Naquela época, nós aprendíamos inglês, francês e latim – e para ler literatura! Hoje as pessoas aprendem inglês para o comércio e para utilizar a Internet”.
Sempre reconhecendo a importância da escola pública na sua formação de escritor, Hatoum lamentou o declínio da qualidade do ensino nessa instituição. “A escola pública permitia o contato entre pessoas de vários extratos sociais. Mas, com a baixa qualidade do ensino, as pessoas com mais condições foram para as escolas particulares. Isso empobrece a experiência de escrever, porque empobrece o contato entre as diferenças”.
Apesar de admitir o déficit da formação dos leitores brasileiros, considerou: “Há bons leitores no Brasil. Por isso eu demorei a publicar; não queria publicar qualquer coisa, em respeito ao leitor”.
O livro que o autor escolheu para apresentar ao público foi o romance premiado Dois Irmãos, sobre o qual falou longamente, destacando detalhes da composição. Em seguida o microfone foi aberto à plateia.
Das intervenções do público, uma em especial aqueceu a discussão, ainda que com bastante humor. Uma senhora se apossou do microfone para expor sua perplexidade diante do enredo de Dois Irmãos, cuja atmosfera é carregada das relações incestuosas entre mãe e filho. “Estou chocada! Enquanto o senhor falava, eu pensava: ‘meu Deus’! Quase não consegui esperar o senhor terminar de falar. Sabe por quê? Porque mãe é coisa sagrada!”. Diante da reação da plateia, entre risonha e apreensiva à espera da resposta que estava por vir, Hatoum não disfarçava o prazer que aquela “perturbação” lhe causara – afinal, provocar discussão e afetar o leitor é o grande triunfo de um romancista. Mas, antes de devolver a fala a ele, a senhora perguntou, com astúcia: “O senhor fez de propósito?”.
Afável mas incisivo, Hatoum iniciou a réplica com uma frase do escritor português José Saramago: “O romance é uma vida que não deu certo”. A partir disso, explanou sobre a crise provocada pela arte e o questionamento (às vezes, aniquilador) dos valores, tocando no cerne da nossa condição. Por fim, após o autor considerar, bem-humorado, que não poucos leitores estariam dispostos a queimar a sua obra, aquela senhora retrucou: “Eu mandava fazer uma fogueira, meu filho!”.