30 out
Dia do Saci
No início do século XX, Monteiro Lobato bradava: “Nossa ninfa é a Iara! O duende brasileiro é o Saci!” O autor, que ainda não havia escrito o primeiro livro do que seria a série Sítio do Picapau Amarelo – aliás, ele ainda não havia escrito nenhum livro –, achava um disparate ver miniaturas de duendes agasalhados no calor escaldante do Parque da Luz, onde a burguesia paulistana desfilava vestida ao gosto europeu.
Sabemos que Lobato admirava Henry Ford e era deslumbrado com o modelo de industrialização estadunidense. Mas não era ingênuo. Sabia que uma forma de domínio de uma nação sobre as outras passava necessariamente por fazer as outras assimilarem a cultura do dominador. Não por acaso, querendo ver o Brasil em destaque junto às outras nações, fez várias tentativas malogradas de montar uma “Casa do Brasil” nos Estados Unidos, na época em que foi adido comercial na América, durante o governo de Washington Luiz, na década de 20 do século passado.
Também é conhecida a polêmica do artigo A Criação do Estilo, de 1918, com duras críticas à pintora Anita Malfatti. Mas, para o que queremos tratar aqui, deixemos a polêmica de lado. Basta relembrar que no artigo o autor defende a busca de uma estética conforme a cultura brasileira nas belas artes. A ideia surgiu do interesse pela lenda do Saci Pererê da parte de forasteiros que chegavam à fazenda do Buquira, recém-herdada por Lobato. É a partir das vivências nessa fazenda que ele conclui que o verdadeiro “duende” brasileiro era o Saci, assim como a nossa “ninfa” era a Iara.
Disposto a empreender uma investigação sobre a origem da lenda do Saci Pererê, sugeriu aos leitores dO Estado de São Paulo que escrevessem ao jornal, contando o que sabiam, como o souberam, quando e através de quem – medida considerada a primeira vez em que um jornalista no Brasil aclamava a interação pública. Ao mesmo tempo lançou um certame como desafio aos pintores brasileiros: pintar um quadro que melhor retratasse de modo genuinamente brasileiro o Saci Pererê, dentro dos moldes acadêmicos. O vencedor do certame foi Roberto Cipicchia, com o quadro Saci na Cavalhada. Quanto às histórias remetidas pelos leitores do jornal, resultaram no primeiro livro de Lobato: Saci Pererê – resultado de um inquérito, cuja impressão foi financiada com anúncios publicitários no próprio livro, onde vemos a figura do Saci como garoto propaganda de chocolate, perfumaria, máquina de escrever, entre outros produtos.
Um duende brasileiro
Já naquele levantamento empreendido por Lobato, a figura do Saci aparece fortemente ligada à figura dos negros escravos. Mas pesquisas posteriores dão conta de que, como autêntico mito popular brasileiro, o Saci é expressão da própria mistura de etnias formadoras da identidade brasileira. Assim, originalmente, se trataria de um mito indígena. Conta-se que um pássaro mágico do imaginário indígena – o Matita Pereira ou Matita Perê – é que teria se desdobrado na figura de uma velha bruxa, em algumas versões, ou na de um curumim, em outras. Com o passar do tempo, através da imaginação ativa dos negros escravizados, que marcaram indelevelmente a formação do nosso país, o mito indígena foi ganhando outros matizes, até se tornar um menino negro, fumando cachimbo, e com uma perna só – a outra teria sido perdida numa roda de capoeira.
O Saci Pererê nasce nos gomos de um determinado tipo de bambu. Ali permanece por sete anos. Depois, sai para o mundo, aprontando as mais diversas travessuras, durante outros 77 anos. Passado esse tempo, não morre, mas se transforma em certo cogumelo conhecido como orelha-de-pau.
Saci “expiatório”
Apesar de ter sido fortemente combatido e demonizado pelos missionários jesuítas, que se empenharam pela cristianização da nossa cultura, o Saci resistiu. E precisamente por conter traços culturais dos diferentes povos que formaram o Brasil, se tornou a mais libertária das criaturas que povoam o imaginário popular brasileiro: Alegre, brincalhão, peralta, travesso, reinador, bailante, o negrinho perneta de gorro vermelho se tornaria um ente dos mais carismáticos, espalhando sua alegria indomável e subversiva nas instâncias mais sombrias e violentas da nossa cultura.
Amigo das negras escravizadas nas cozinhas da Casa Grande, assumia para si toda a culpa, quando acontecia de a comida estar mais salgada e os patrões ameaçarem castigar as mulheres. Também se atribuía a ele toda sorte de rebuliços, por ocasião das rebeliões dos negros que lutavam pela liberdade do seu povo.
O próprio gorrinho vermelho que o Saci ostenta – característica de remanescentes míticos ibéricos – é um traço fortemente libertador. Desde a Roma Antiga, usar um chapéu vermelho era um distintivo de escravo liberto. Distintivo que perdurou mesmo durante a Revolução Francesa, sendo a marca dos republicanos.
Dia do Saci
No melhor estilo lobatiano, um grupo de pesquisadores, escritores e agentes de cultura criou, há 11 anos, a Sociedade de Observadores de Saci – a Sosaci, promovendo anualmente a Festa do Saci de São Luiz do Paraitinga, no interior paulista, todo mês de outubro. E a data para celebrar o Dia do Saci é precisamente o dia 31 de outubro, em franca oposição ao Dia das Bruxas ou Halloween da cultura estadunidense disseminado no Brasil, sobretudo junto às crianças, através de desenhos animados e filmes enlatados, se inserindo mesmo nas escolas, através dos cursos de inglês. Para os criadores do Dia do Saci, a abóbora que simboliza o Halloween norte-americano só é admitida em suas festas com a seguinte condição: apropriada pela culinária tipicamente brasileira, servida à mesa com muita fartura, temperadinha e, claro, com bastante carne seca.
Saci de apartamento
“É peroba do campo/ é o nó da madeira/ caingá, candeia, é o Matita Pereira”… Quem nunca se perguntou do que tratavam esses versos da clássica “Águas de março”, de Tom Jobim? Aliás, esse aspecto muitas vezes negligente dos brasileiros para com a própria cultura brasileira, foi ironizado certa vez pelo compositor, nesses termos:
“Enquanto o progresso vai resolvendo certos problemas, cria a cidade neurótica, a São Paulo, a Nova Iorque. O Rio tem tráfego, o assalto, a metralhadora, o apartamento, o confinado, o refrigerado. Aí eu faço uma música como ‘Matita Pereira’ e fica um negócio assim da pessoa ter que ir ao dicionário procurar o significado. O Matita Perê é um passarinho do sertão, ele não vai nos auxiliar a comprar detergente, a ir ao supermercado, a comprar a máquina de lavar. Assim, ele começa a virar uma figura, como direi, underground? Uma figura folclórica, um ente, um Saci. Ora, o que é que o barulho do Rio tem a ver com Saci? Saci não dá em apartamento!”
Mas, para você que quer fazer brotar saci na sua casa, na escola, nos apartamentos e onde mais puderem brotar pela força de narrar e de ler, sugerimos os livros abaixo da Coleção Mitologia Brasílica (Liz Editora), do escritor e jornalista Mouzar Benedito e do ilustrador Ohi – grandes amigos do Saci Pererê e amigos dos amigos do Saci.
Então, canta, Tom Jobim!
Imagens, por ordem em que aparecem: Tarsila do Amaral, Monteiro Lobato, Voltolino, Ohi e Ziraldo