09 dez
De uma leitura de Guimarães Rosa na adolescência
Quando cursava o ensino médio, na E. E. Professora Cynira Pires dos Santos, em São Bernardo do Campo (SP), Filipe Nério de Oliveira participou de um projeto de incentivo à leitura. Em 2007, foi desafiado, no mesmo projeto, a ler em grupo o monumental Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. De lá para cá, o jovem, agora um dedicado universitário, que também trabalha como mediador de leitura, não para de ler e escrever. Abaixo, a surpresa de um texto (resumido) que ele nos mandou por e-mail, contribuindo para nossas histórias de leitura.
O Transeunte dos Gerais – Memórias e questões sobre Grande Sertão: Veredas
Certa vez, fiz-me de transeunte nos descontornos da vereda humana. De tudo se encontra nesses lugares: caminhosinhos. O senhor sabe. É diabo no meio do redemoinho. O menino Jesus debaixo de uns couros de cabra. Coisisses… Às vezes me pego no pensar, dentro de meus esmos… É sertão senhor. O misturado, o vertido, o dentro e o fora. Contradição não há.
Há de! Que questão é essa de sofrer de se pagar pecado por maldade mal resolvida? E se sofrimento é negócio tratado de cordeiro, por que é que ele sai andando sertão a fora com os pés sobre os cascos? O senhor tolere. Isso é sertão. É diabo na rua, sofrendo feito gente. O senhor vê? Até cordeiro é acusado de acusações. Mas o diabo, capiroto, o que o diga, não escapole de acusação não. A gente é querente, quer justiça.
Nesse sertão, vida de gente vai muito mais além desses errados e certos. Mas a morte pede da gente alguma certezasinha. A gente se coloca a pensar nas coisas todas, de perguntar a esmos e mesmos, passados a trinta léguas de distâncias da vereda d’ hoje.
Donde é que vem tanta bondade e ruindade?
Onde é que agente pisa?
A gente cá pensando… Se ser tivesse sido, paraíso seria. Se ser não sesse, então haveria de ser sertão. Então, a gente sendo o não sendo, não seria mais como se sesse? Ai de! Mas aí nem Deus, nem diabo é. Digo: não estou descrendo da palavra do Senhor! O senhor me conhece e sabe disso. É só duvida de Jagunçagem. Aquelas águas passadas… Vida minha ao Senhor pertence!
Compadre meu Quelemém me sugere: Sertão é existir o de dentro. Gente forasteira, de cidades há de dizer o que eu disse – “O sertão é o nada a muitos quilômetros de distância” – Lá nada existe, nada vezes. Agora, aqui com o senhor estou sendo e vendo – O sertão é o nosso existir. O O Sertão é pulsante. Ser Tão. O senhor percebe? Na verdade se acanha no medo de se afogar dentro do si mesmo… Nosso Urucuia de dentro da gente.
Quem é pai de homem humano sabe: Se a gente humana amar, a gente acaba por acordar Deus, e então haveria de ser bondoso no trilhar de veredas. A gente não escolhe. A gente só convive com essas coisas-confusas. O sertão é essa fome. O sertão tem fome de tudo. E de repudiar profundo esse sentimento que atravessa a gente feito quicé. Daí, Deus e diabo almejam mira na gente. Viajam dentro de nós, tentando por demais matar a fome que passaram a sentir. O senhor sabe. A gente tem um fruto. Aquele de buriti.
Essa morte sertaneja vem “aridando” os meus esmos. Quem é que salva a gente? Lembrei de olhares, um era especial. O das folhudas pestanas… O senhor recorda? Diadorim. O confuso deixava de ser confuso, as coisas voltam as suas levezas, de dor não carecia mais. O peso de ser, as araras coloridas na lagoa suçuarana. A existência de ser, os buritis à beira do São Francisco. Diadorim me fez Buriti. Na meia estação, meus frutos mergulham profundamente naquele rio da travessia. Me fiz retorno no contar. Cavei raízes. Deixei meus frutos a navegar no rio que partiu minha vida em dois extremos. O diabo na rua. Deus em tudo.
(Quer publicar aqui a sua história de leitura? Escreva para lerepreciso@ecofuturo.org.br).