19 nov
As cores e as letras: um recorte da literatura brasileira contemporânea
No último dia 13, o Dieese divulgou um estudo que mostra que um trabalhador negro recebe, em média, 36,1% menos que um trabalhador não negro. E isso independentemente da região em que residem ou da escolaridade que possuem. A pesquisa aponta ainda que essa diferença tende a ser ainda maior nos cargos de chefia. Detalhes da divulgação da pesquisa podem ser consultados aqui.
Desvalorização histórica que conforma a própria cultura brasileira, tamanha desigualdade estaria refletida também na nossa literatura?
Sim. É o que afirma a professora da Universidade de Brasília – UnB, Regina Dalcastagnè, após 15 anos de pesquisa sobre o perfil da literatura brasileira contemporânea. A professora se debruçou sobre os romances brasileiros publicados entre 1990 e 2004 pelas maiores editoras do país – Companhia das Letras, Rocco e Record –, com o intuito de mapear o perfil médio dos escritores e das personagens representadas nos livros. O resultado, segundo ela, é que “séculos de racismo estrutural afastam dos espaços de poder e de produção de discurso a população negra”.
Letras em números
Das 1.245 personagens catalogadas em 258 obras, somente 2,7% são mulheres negras. Nessas poucas aparições, são retratadas como empregadas domésticas ou prostitutas, em 70% dos casos. Mas há também aparições como donas de casa, escravas e delinquentes. A análise ainda aponta que em apenas três dessas obras uma melhor negra aparece como protagonista – e em apenas um caso é ela a narradora.
A regra da exclusão vale também para as personagens negras masculinas, majoritariamente representadas como marginais, enquanto a maioria branca desempenha papéis de artistas ou jornalistas.
O perfil médio das personagens desses romances, segundo a pesquisa, seria: homens brancos (79,8%), provenientes da classe média (56,6%) e heterossexuais (81%). Em 56% dos romances não existe sequer uma personagem não branca.
Quem está falando
72,7% dos romances analisados foram escritos por homens. Destes, 93,9% são brancos.
Detalhes da pesquisa
A pesquisa resultou no livro Literatura Brasileira Contemporânea: um território contestado, lançado em 2012 pela Editora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro – Uerj – em parceria com a Editora Horizonte.
Mas um relatório detalhado do estudo de Regina Dalcastagnè pode ser consultado online, através do site da Universidade de Brasília:
– Entre silêncios e estereótipos: relações raciais na literatura brasileira contemporânea
– A personagem do romance brasileiro contemporâneo: 1990-2004
Para acessar um infográfico do Portal Ponto Eletrônico com as principais informações sobre a pesquisa, clique aqui.
Regina Dalcastagnè informou, quando da divulgação do estudo, que uma nova equipe já foi montada para prosseguir com a pesquisa, junto às grandes editoras, com um recorte das publicações de romances de 2005 a 2014.
Lugares de discurso e uma ambiguidade literária
Importa notar que a pesquisa não pretende desqualificar os livros pesquisados segundo suas construções formais – isto é, pelas suas qualidades propriamente literárias. Existe, na totalidade do estudo, espaço para considerações de ordem estética. Mas a pesquisadora alerta para o fato de a literatura brasileira refletir – e sem que haja aí uma reflexão – os lugares de discurso fortemente demarcados na sociedade, em que o direito à fala de si é sonegado a determinados segmentos da vida cívica, que, tendo a sua fala negada, são falados não por si mesmos, mas pelos outros. Nas palavras da professora: “É uma ilusão que a literatura seja um objeto artístico muito crítico. Ela é produzida por uma elite branca, que reflete suas representações, assim como o cinema e o teatro”.
Se a língua instaura um espaço de poder, obrigando a dizer segundo o seu próprio sistema, como diz Roland Barthes. E se, ainda conforme este autor, cabe ao artista contestar esse sistema de poder, sabotando-o pelos deslocamentos da própria linguagem, as perguntas suscitadas pela pesquisa da professora Dalcastagnè são justamente aquelas que não querem calar: começaríamos por tentar compreender por que parte expressiva da literatura brasileira contemporânea quer pactuar com discurso tão verticalizado sobre o outro – os muitos outros que somos nós, os brasileiros?
Ler, escrever, se manifestar através da própria palavra, é um direito inalienável. Então, a questão não é apenas por que os escritores pesquisados se posicionam de determinada forma, mas nos perguntarmos: onde estão os outros que poderiam dizer de si e de outras representações da nossa cultura? Para que um dia, quem sabe, deixem de se cumprir estas duras palavras do antropólogo Lévi-Strauss:
“[…] a função primária da comunicação escrita foi favorável à servidão. O emprego da escrita com fins desinteressados, visando extrair-lhe satisfações intelectuais e estéticas, é um resultado secundário, se é que não se resume, no mais das vezes, a um meio para reforçar, justificar ou dissimular o outro.”
E se uma das virtudes da arte é a de não exigir consenso, fica aqui uma provocação para o leitor, a partir de um belo e ambíguo poema de Manuel Bandeira. Ora visto como uma homenagem a uma mulher negra, ora como uma expressão da docilidade que os patrões exigem dos subordinados, o poema ganhou várias releituras nos últimos tempos. Uma delas, a de Márcio Barbosa, que optou pela contestação desse território. Fica para você decidir, leitor.
Irene no Céu
Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor.
Imagino Irene entrando no céu:
– Licença, meu branco!
E São Pedro bonachão:
– Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.
(Manuel Bandeira)
O que não dizia o poeminha do Manuel:
Irene preta!
Boa Irene um amor
mas nem sempre Irene
está de bom humor
Se existisse mesmo o Céu
imagino Irene à porta:
– Pela entrada de serviço – diz S. Pedro
dedo em riste
– Pro inferno, seu racista – ela corta.
Irene não dá bandeira
ela não é de brincadeira
(Márcio Barbosa)
Créditos das imagens: Recorte do infográfico do Portal Ponto Eletrônico; Foto da professora Regina Dalcastagnè (divulgação).
A citação de Lévi-Strauss foi extraída de Tristes Trópicos, com tradução de Rosa Freire d’Aguiar