06 fev

Cuidados com a Vida

O cuidar se manifesta pela coerência.

A coerência é o acolhimento das demandas de ambas as pontas de uma interação.

Implica um vínculo, uma conexão viva, aquilo que o filósofo Martin Buber cunhou como uma relação Eu-Tu, ao invés de Eu-Isto.

Somente quando houver do outro lado de uma interação não um objeto – um Isto – mas um sujeito independente, que estabeleça mutualidade e não uso, somente então aparecerá em cena o cuidado. Para cuidar é necessário que haja reciprocidade entre as pontas e que a ênfase da relação não esteja apenas em uma delas.

O sábio Hilel, do século I, explicita essa coerência: “Se eu não sou por mim, quem é por mim, e se eu sou só por mim então o que sou eu, e, se não agora, quando?”. Se eu não sou por mim, se eu não cuidar de mim, se eu não tiver um olhar pelos meus interesses, quem é que vai fazer isso? Eu sou o responsável, eu sou o gerente de minha própria existência. Ao mesmo tempo, se eu sou só isso, o que eu sou? O bem-estar, sozinho, não tem um significado em si: há uma dimensão interativa e comunitária, uma dimensão maior, mais ampla e que diz respeito ao meio e à rede em que existimos. E, por último, obviamente também há a questão da necessidade de ação: se não agora, quando?

O cuidado é o triângulo entre o Eu, o Tu e a ação que demanda coerências. O sábio está dizendo que não existe um sujeito absoluto em nós, mas que nossa identidade se forma momentaneamente a partir das interseções entre a pessoa, o outro e o fazer. Para ser cuidadoso comigo, tenho de ser coerente em relação aos cuidados com o outro e com as minhas ações. Qualquer forma de incoerência produzirá o efeito contrário ao cuidado, podendo gerar a violência.

Quando não cuidamos, violamos o princípio de reciprocidade e deixamos de nos comprometer com um dos lados de uma interação. Para obter essa coerência, o Eu terá de reconhecer no ato de cuidar e ser cuidado o valor máximo da vida. Terá de modificar seus hábitos (senão vícios) quanto à percepção daquilo que é vantajoso e proveitoso e que equivocadamente parece relacionado apenas a seus próprios interesses.

   Uma antiga parábola conta sobre um homem que sonhava conhecer o Paraíso. Para sua surpresa, as pessoas não estavam num lugar idílico, repleto de prazeres e regalias, mas simplesmente estudavam conjuntamente. Não contendo sua decepção, o homem indagou: ‘Então isso é que é o Paraíso?’ De imediato, uma voz se fez ouvir: “Você se engana se pensa que os justos estão no Paraíso. É o contrário, é o Paraíso que está nos justos!”.

A qualidade máxima a que almejamos não se encontra em nenhuma forma de posse ou lugar externo, mas nas interações coerentes com a nossa vida interior.

A incoerência e o descuido acontecem porque queremos controlar. Porque o controle é justamente a supremacia de uma das pontas sobre qualquer interação. E aquele que exerce o controle jamais conhecerá a paz ou o Paraíso. Quem abrir portas para a violência de suas incoerências será maculado pela falta de qualidade.

Nossa civilização tentou produzir modelos culturais que simbolizassem o cuidado. A primeira tentativa foi a de dizer que no universo há um Pai que cuida. Seguiu-se a essa metáfora a perspectiva do Filho que é cuidado pelo universo. Propôs-se também, como no Cântico dos Cânticos, a simbologia do cuidado representada na relação entre amantes.

No entanto, nenhuma perspectiva do cuidado foi mais poderosa do que a de Abraão. O impacto de sua visão chega a nós ainda hoje através das três grandes religiões do Ocidente. Sua fala era mais abrangente do que as imagens de cuidado presentes nas relações entre pais e filhos ou mesmo entre amantes: a coerência do cuidado não precisava existir em função de uma relação específica, e sim em todas as interações.

A hospitalidade e o acolhimento que abrem espaço para acomodar o outro em sua própria identidade é a metáfora suprema de uma relação Eu-Tu. Esse cuidado com o outro e com a ação não só determina a identidade do próprio indivíduo como revela um segredo oculto. Poderíamos, assim, não só conhecer a nós mesmos nos cuidados como também reconhecer o cuidado que perpassa tudo o que existe. A esse cuidado ele nomeou Deus. Não mais o politeísmo das coisas que existem de per si, deus chuva, deus trovão, deus sol, mas o cuidado que entrelaça todos os elementos do universo. Estava revelado o vínculo entre ser por mim, ser não só por mim e a responsabilidade da ação. Da descoberta desse cuidado nascia o humano e também o divino no horizonte.

 

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