19 nov
Boas práticas em educação socioambiental: o Ayê Nagô, um educar para a igualdade racial
O projeto põe em debate a identidade brasileira, a partir das diversas matrizes étnicas que a constituem. A ênfase na problemática afrodescendente se deve à constatação de se tratar de uma matriz pouco reconhecida no processo de construção da brasilidade, a tirar pelos relatos dos próprios alunos, expressando preconceitos e desconfortos ao tratar do tema. Partindo do trabalho de pensadores como Darcy Ribeiro, para quem a nossa formação começa pela produção mesma de características até então inexistentes, expõe se o desafio da construção (ainda em processo) de uma identidade inteiramente nova — desafio que começa no próprio reconhecimento de tal processo como responsabilidade nossa, como algo a que pertencemos, resultante do encontro das diversidades. Merecem destaque os registros audiovisuais, que permitem aos alunos um olhar próprio sobre a realidade em que atuam, a apreciação e o debate público no ambiente escolar.
1. Resumo do projeto: somos iguais na nossa diferença
O projeto “O Ayê Nagô, um educar para a igualdade racial” foi motivado pela constatação realizada a partir de debates mediados em sala, junto aos alunos do 9º ano do Ensino Fundamental. Os estudantes da localidade da Vila Dois Carneiros, em Jaboatão, Pernambuco, onde a escola está inserida, não se reconheciam como parte do fruto da miscigenação de povos indígenas, europeus e africanos. Quando não se identificavam como descendentes de uma matriz indígena, se reconheciam como brancos, ou pardos de forte herança europeia, dificilmente se achavam pessoas de origem afro. Diante do cenário social apresentado pelos estudantes, e dentre os diversos aspectos sobre a cultura afro no Brasil, foram destacadas as questões relativas à nossa ancestralidade, e as inúmeras “visões” que este tema retrata. Assim, percebeu-se a partir da apresentação de vídeos do canal Futura (Série Mojubá, Heróis de todo mundo e Nota 10), de textos de revistas e jornais de grande circulação, e da própria inquietação que o tema sugeria, que se fazia necessário um debate mais abrangente, em torno dos diversos instrumentos de opressão usados pelas elites nacionais durante nossa conturbada história política, que foram fundamentais para construir nos brasileiros um estigma de que ser descendente de africano era algo a ser desprezado. Não deixando de levar em conta a condição dos africanos que aqui chegaram e tiveram que se adaptar a uma nova e difícil realidade, iniciou-se um estudo aprofundado sobre a questão afro-brasileira.
2. A hipótese
O principal objetivo do projeto foi conscientizar os alunos sobre a importância de se identificar enquanto personagem histórico de um país plural e diversificado, fruto da miscigenação de negros, índios e europeus, porém, com destaque à nossa ancestralidade africana. Neste sentido, os alunos produziram um vídeo documentário que abordou o tema da pluralidade cultural, com ênfase em nossa afro-descendência.
3. A ideia inicial: pluralidade, brasilidade, sustentabilidade
A partir da constatação de que os alunos do 9º ano do Ensino Fundamental não se reconheciam como frutos da miscigenação de povos indígenas, europeus e africanos, excluindo a matriz africana por preconceito e falta de informação, nasceu a motivação para este trabalho. No projeto realizado, a pluralidade realmente se evidencia no contexto da brasilidade, porém, a matriz africana, nesse primeiro momento, é analisada a partir de seu caráter mais genuíno, e como “mola mestra”, visto que a desvalorização e falta de identidade dos alunos com as raízes africanas se fazia mais evidente e agressivo. A matriz afro, como não poderia deixar de ser, se entrelaça com as matrizes lusa e indígena no processo de desenvolvimento do projeto, desde as discussões em torno das questões relacionadas aos choques entre as etnias, até às miscigenações de ordens diversas desses 500 anos de História do Brasil.
Foto: Projeto O Ayê Nagô
4. O âmbito: miscigenação – passado, presente e futuro
• Identificar os elementos étnicos e culturais de nossa brasilidade afro-descendente;
• Reconhecer os símbolos da mística religiosa das divindades africanas trazidas para o Brasil;
• Analisar textos e imagens que enfoquem aspectos da História e da cultura negra;
• Refletir sobre os prós e contras da obra Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre;
• Discutir a importância da miscigenação entre africanos, europeus e indígenas para formação e consolidação da cultura brasileira.
• Avaliar a participação da mão-de-obra escrava no desenvolvimento da economia do Brasil;
• Debater a participação do negro na mídia, no mercado de trabalho e na sociedade contemporânea.
Assim que se iniciaram as discussões em torno da nossa ancestralidade no contexto plural do Brasil, a comunidade escolar, formada principalmente por alunos de baixa renda de famílias de trabalhadores urbanos (domésticas, mecânicos, operários), apresentou uma forte rejeição ao tema. Alguns alunos eram orientados pelas famílias que tratar desse tema era errado, “era pecado”. O contexto da África ainda era visto como algo sombrio, carregado de conceitos pré-estabelecidos por uma tradição patriarcal cristã, que remete à época do período colonial brasileiro, mas que ainda se mantém forte na região. A comunidade, de forte tradição protestante (evangélica), que habita uma área de morros, com pouca infraestrutura, saneamento, segurança, equipamentos culturais e de lazer, se deparou com um desafio ao discutir os elementos que permeiam a realidade em torno da lei 10.639/03.
5. Mãos à obra: transgredir os caminhos do óbvio
O trabalho foi iniciado com debates mediados, onde se discutiu a importância da História do Brasil na reconstrução de nossa brasilidade. A partir daí foram rediscutidos conceitos que tratavam dos aspectos referentes à miscigenação étnica que deu origem ao povo brasileiro. Neste sentido, foram analisados os seguintes vídeos temáticos do canal Futura: o Nota 10, devido a significativa abordagem feita em torno da realidade do negro ontem e hoje, no Brasil e na África, no geral e no individual; Heróis de todo mundo, pois apresentou aos alunos um panorama histórico das personalidades afro-
-descendentes do Brasil de várias épocas; e a série Mojubá, que, de forma direta e objetiva, trouxe para dentro de sala o universo étnico-religioso das matrizes africanas e seus sincretismos lusitano e tupi. Os vídeos tratavam da nossa ancestralidade africana e suas miscigenações, além do papel do negro no Brasil contemporâneo.
Também foi usado o documentário O povo brasileiro, de Darcy Ribeiro, para reconhecimento do legado histórico das matrizes lusa, indígena e africana, e de sua relação com a natureza e os meios de produção disponíveis nos diversos períodos de nossa história brasílica. Durante a exibição destes instrumentos visuais, se discutiu com os alunos questões que se identificavam com suas próprias experiências de vida, suas dúvidas e seus conceitos.
Diante do rico cenário de possibilidades construído durante os debates, foram propostos temas, por parte do professor, para que os grupos da sala desenvolvessem pesquisas com relevância científica, sobre o contexto da pluralidade cultural e de nossa ancestralidade africana. Para fomentar ainda mais as abordagens, foram distribuídos jornais e revistas de grande circulação, onde os alunos poderiam encontrar notícias que serviriam para aprofundar o debate temático. Lançado o desafio de transformar as pesquisas desenvolvidas em um documentário, era chegado o momento de transgredir os caminhos do óbvio, e construir na prática o “objeto informativo” transformador das ideias em realidades visuais. Organizada em tópicos, assim foi a etapa mãos à obra do projeto:
• Debate mediado sobre a importância da História do Brasil, para se entender a pluralidade cultural e nossa afro-descendência;
• Análise de vídeos temáticos, revistas e jornais de grande circulação;
• Confecção de trabalhos, momento de produção de cartazes em sala de aula;
• Seminários, fase onde as equipes apresentam seus trabalhos para os colegas da mesma turma;
• Lançamento de desafio e produção de roteiros para vídeos documentários;
• Captação de áudio e imagens;
• Edição dos vídeos;
• Culminância, momento em que os grupos
expõem suas produções para toda a escola.
Foto: Projeto O Ayê Nagô
6. Processos da educação para a sustentabilidade: homem e natureza indissociáveis
A partir do acompanhamento de todas as etapas do processo de desenvolvimento do trabalho, como análise mediada dos vídeos exibidos, leitura e discussão dos textos, pesquisas dirigidas, assim como o envolvimento e comprometimento com as atividades propostas pelo projeto, através da confecção dos trabalhos (cartazes) e produção de roteiros, captação de imagens e apoio na edição de vídeos, apresentação de seminários e exposição na culminância do projeto, foi possível perceber a mudança de atitude dos alunos com relação à questão afro-descendente, bem como do envolvimento da turma em todas as etapas da produção do vídeo.
De uma falta de identificação dos alunos com sua ancestralidade africana, em conformidade com a lei nº 10.639/03, o projeto surgiu, e a partir da necessidade que se fazia presente, da construção de uma consciência negra, mulata,
cafusa, mameluca, brasileira, ele conseguiu ir mais além, transformando meros expectadores da História em protagonistas de suas próprias realidades, anseios e utopias. Percebe-se que os alunos já não apresentam mais vergonha de se identificar como negros, ou descendentes étnicos dessa matriz. Além disso, discutir religiosidade africana com os educandos envolvidos no projeto já não é mais um tabu ou pecado, agora é uma realidade brasileira, e um objeto de estudo em ciências humanas.
A relação entre as diversas matrizes constitutivas da brasilidade seguem no contexto do projeto, sob a ótica da miscigenação e do sincretismo. Ao tratar da relação entre indígenas e africanos no Brasil, por exemplo, se discutiu a miscelânea dos dois grupos étnicos na resistência dos quilombos e na formação cultural e rítmica do Brasil, como no caso do samba, ou “semba”, que teria sido originário de instrumentos de cordas lusos, interpretados por indígenas em processo de catequese, que no contato com os tambores africanos, se fundiu e disseminou; nos rituais indígenas que misturados aos africanos deu origem à “Jurema”, no uso de plantas nativas e trazidas da África, que se aglutinaram e formaram uma verdadeira enciclopédia de tratamentos medicinais, até às transformações na língua portuguesa, nos sotaques e na relação com a natureza e o meio ambiente. A fase anterior do projeto foi marcada pela rejeição ao tema. A resistência estava evidente na fala e na postura retrativa dos alunos, o discurso era uníssono, “agora vamos estudar macumba?”. Após a realização do projeto, os anseios e utopias pré existentes foram “reconfigurados”. O imaginário se transformou de tal maneira que a maioria dos alunos está envolvida em ações culturais, ambientais, científicas e até religiosas das questões étnicas do Brasil.
O “saber cuidar” se sustenta nos direitos humanos igualitários, com respeito às diferenças, na solidariedade entre os povos, na valorização da vida e da natureza. As vivências indígenas, afros e lusas não se desassociam das relações com a natureza, seja em seu imaginário mítico ou no extrativismo sustentável de matérias-primas fundamentais para a sobrevivência cultural e social desses povos. As pessoas e o planeta estão diretamente conectadas nesse processo.
A ponte para a compreensão de uma educação para a sustentabilidade se estabelece no estudo sobre o exemplo de vida sustentável e igualitário que povos indígenas e quilombolas deixam como legado para as chamadas sociedades de consumo. Seja na igualdade de direito e respeito ao ser humano, reconhecido no sistema comunitário desses povos, seja no exemplo de convivência com a natureza, expresso na realidade de consumo extrativista de subsistência dessas sociedades.
7. Outras informações: é preciso reinventar a sociedade Impactos:
Os impactos foram claros para todos que formam a Escola; a mudança de atitude, postura, participação e protagonismo dos alunos nas atividades culturais e científicas, de caráter étnico racial, mais do que nunca, são agora uma realidade constante para a maioria deles. O resultado pode ser observado na maneira como eles passaram a tratar o tema no documentário, no cotidiano escolar e nas famílias. O respeito no falar das questões polêmicas como religião, mercado de trabalho, relações conjugais, sustentabilidade (…), davam o tom da mudança de atitude e consciência crítica.
No documentário, a segurança em se expressar e abordar as temáticas foram significativas. No dia a dia da escola, os professores comentavam e percebiam como os meninos e meninas se dirigiam às questões étnicas do Brasil com mais respeito e consciência. E nas famílias, o relato de pais, muitas vezes pouco informados de nosso legado racial, mostrava como as discussões realizadas na escola transformaram a própria conversa dentro de casa. Eles viram como nossos conceitos sofrem a influência do conturbado passado histórico do Brasil, e como isso é difícil de desconstruir. O significado do que viam e registravam era a verdadeira quebra de uma teia de conceitos pré- -construídos pelo sistema, e que arraigados em nossa sociedade, há muito tempo, precisava ser reconstruído, “sustentabilizado”, em uma nova sociedade a ser “reinventada” por eles, cidadãos plenos de seus direitos e deveres étnicos, ambientais e universais. Para a escola, esse novo olhar foi uma verdadeira revolução. O reconhecimento de nossas raízes mais profundas mostrou para os alunos e comunidade que todos merecem ser reconhecidos e valorizados por suas “diferenças”, porém, sempre tratados pela sociedade e pelas instituições sociais de nosso país como iguais.
Depoimentos:
Quando o professor chegou com a proposta de discutir a nossa herança africana, eu admito que tive resistência em trabalhar com o tema, mas depois, com o decorrer do projeto, pude perceber o quanto estava enganada com relação à África e à minha afrodescendência. — Sheila (aluna do projeto)
Bibliografia:
BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Parâmetros Curriculares Nacionais – Ensino Fundamental. História. Brasília: MEC/ SEF, 1998.
BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Secretaria Especial de Política de Promoção da Igualdade Racial. Brasília: MEC, 2005.
ARRUDA, José Jobson de Andrade. Toda a história: história geral e história do Brasil. São Paulo: Ática.
PAZZINATO, Alceu Luiz. História moderna e contemporânea. São Paulo: Ática.
RODRIGUES, Joelza Esther. História em documento, imagem e texto. São Paulo: F.T.D.
CORREIA, Lepê. Canoeiros e Curandeiros. Recife: FUNDAJ.
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro – DVD. Fundação Darcy Ribeiro.
CANAL FUTURA. Série Mojuba, Nota 10 e Heróis de todo mundo.
Caderno Educação para a Sustentabilidade. Biblioteca Virtual Ecofuturo.