18 jul
Leitor público, leitor privado: bibliotecas no caminho
O texto que Sabine Righetti publicou por aqui no dia 26 de maio me sensibilizou. O título do post já era um choque: “Pouca gente relaciona biblioteca com educação”. Esperava-se que a relação fosse tão óbvia ao ponto de imperar entre nós uma ideia fortemente escolarizada de leitura. Parece que estamos ainda mais atrasados, e é graças a atrasos desse nível que um dos grandes desafios do Brasil é implantar bibliotecas em todas as escolas do país até 2020, conforme previsto em lei.
Mas eu comecei falando de ter me sensibilizado, e não de choque. É que Sabine, ao narrar no seu blog na Folha de São Paulo a dificuldade que ela teve de encontrar uma biblioteca aberta em horários alternativos, se deparou com leitores que simplesmente a aconselharam a arrumar o quarto para estudar em paz. Se ela arrumou, eu não sei, mas se lembrou dos que não têm quarto. E é aqui que começo a minha história.
Eu não tinha um quarto. E até que saísse de casa para morar sozinho, não teria esse luxo. Ler em casa era praticamente impossível. De um lado, meu pai, me dizendo que, de tanto ler, eu ficaria louco. Do outro, minha mãe (que me alfabetizou em casa, quando eu tinha cinco anos), orgulhosa do “menino estudioso”, mas desconfiando que aquela mania de ler podia ser desculpa para não cuidar dos afazeres domésticos. Havia ainda minha irmã. E a tevê. Como havia tevê naquela casa, o tempo todo! E ler foi se tornando imoral. Coisa de doido, de preguiçoso. (Anos mais tarde, numa entrevista, deixei o jornalista Bruno Paes Manso perplexo, ao contar que a humilhação de ser “pego” com um livro na mão era equivalente à de qualquer moleque que fosse flagrado se masturbando). Ler era humilhante.
Na época em que eu ousei ler em casa O Primo Basílio de Eça de Queiroz, o fiz enquanto todos dormiam. Mas a casa era tão pequena que era impossível acender a luz da cozinha sem importunar o sono dos outros. Mas eu li. Me deitava no chão da cozinha, a cabeça escorada no travesseiro rente ao fogão, e lia, lia durante horas – com a luz do forno.
Foi assim que, numa época em que Diadema lançava sua má fama para o mundo, com inacreditáveis índices de homicídio, eu descobria uma outra Diadema: aquela que tinha 11 bibliotecas públicas – uma em cada bairro. Eu ainda não sabia o quanto esse índice nunca levado em conta quando se falava da cidade era incrível, mas, quando penso no Brasil indigente de leitura e de bibliotecas públicas de hoje, constato: isso, sim, era um luxo. Até essa descoberta, a ideia que eu tinha de biblioteca não era mais que um entulho de livros velhos, jamais utilizados, em que a professora da terceira série me deixava de castigo quando eu “falava muito”.
Aliás, a relação entre escola e biblioteca sempre me pareceu descompassada, ao longo de anos como aluno. Por exemplo, em 1997, a escola em que eu estudava, sem a menor estrutura para armazenar livros, recebeu do Governo Federal milhares de exemplares novíssimos. Distribuídos aleatoriamente pelas salas de aula, em prateleiras precárias, viraram material lúdico para exercício do vandalismo diário de uns meninos que adoravam desfolhá-los nas pás dos ventiladores – enquanto duraram os ventiladores, claro. Foi assim que comecei a “levar livros para casa”, sem jamais devolvê-los. Durante anos tive um exemplar de Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, levemente vandalizado, com uma marca de pé na página de rosto. E foi assim que descobri as crônicas de Otto Lara Resende, no livro Bom Dia para Nascer. Eu cursava a sétima série, e foi a primeira vez que sonhei fazer uma faculdade – eu achava que, se fizesse jornalismo, aprenderia a escrever como Otto.
Mas aquele descompasso entre escola e biblioteca se repetiu mesmo no ensino médio, quando fui estudar em uma escola técnica de período integral considerada modelo. De fato fiz um ótimo ensino médio, mas a biblioteca só foi aberta no último ano, quando dois amigos e eu nos tornamos voluntários. De resto, nós alunos aprofundávamos nossas estudos na biblioteca central da cidade, geralmente na saída para o almoço. E foi nesse trânsito entre escola e biblioteca municipal que eu comecei a ampliar meu repertório de leitura, foi aí que explodiu de vez o meu fanatismo literário. Na hora do almoço, biblioteca; na saída da escola, biblioteca; se a escola me enchia o saco, matava aula para ficar na biblioteca…
Deixou de ser penoso o fato de não poder ler em casa. Foi em torno dessa biblioteca que fiz grandes amizades: pessoas que conhecia nas oficinas, nos saraus… Uns amavam música, outros eram loucos por dança, teatro… E todo mundo lendo, comentando os livros, sacando-os do bolso, mostrando trechos, declamando nos bares… Eu não precisava mais ler em casa. Casa só servia, quando muito, para dormir: na medida em que fui achando minha turma entre leitores, não saía sem uma muda de roupa na mochila, pois onde houvesse poesia eu me ajeitava e passava a noite. Aliás, falar olhando no olho e cuidar do outro por força da amizade foi assim que eu aprendi.
Às vezes, de modo pedante e hilário. Certa vez, aos 17 anos, numa madrugada, eu estava com alguns amigos na praça contígua à biblioteca central. Um bêbado aproximou-se de nós pedindo bebida. O ignoramos. Recitávamos poesia, maravilhados. O bêbado deitou-se por ali mesmo, recostado a uma árvore, resmungando. De repente voltou-se para mim, à queima roupa: “Você já leu Oscar Wilde?”. Rancoroso e despeitado, respondi com um “não” que me doeu na alma. O bêbado, sempre me intimando: “Então leia O Retrato de Dorian Gray – tem ali na biblioteca!” Começou ali minha paixão por Oscar Wilde. E uma grande amizade com aquele bêbado estranho. Um poeta da cidade.
Autor: Reni Adriano