01 jul

O que faz seu animal ser gente

Se houvesse um Hamlet made in século XXI, sua questão não seria mais Ser ou não ser. Se no passado o drama existencial pôde ser abarcado nessa pergunta, hoje ela poderia ser reformatada para Ser ou não ser humano?

Uma grande inquietação toma conta de corações e mentes. Notem-se as plateias lotadas no mundo inteiro para filmes como Quem somos nós – um docudrama misto de auto-ajuda com pitadas de espiritualidade, filosofia e física quântica de resultado polêmico. Passemos o mouse na tela real que nos cerca. Depressão, síndrome de pânico, alcoolismo e outras tantas mazelas contemporâneas confirmam que algo está fora da ordem. Quem escreve esse roteiro?

Há tragédias coletivas que revelam o quanto estamos próximos e distantes desse projeto de ser humano, como aconteceu recentemente em Santa Catarina. Brasileiros de todas as partes do Brasil imediatamente se solidarizaram de várias formas, muitos se deslocando da zona de conforto para ir lá, pessoalmente, cuidar de quem precisava de cuidados. Seria a mesma a força vital que moveu voluntários e fez saqueadores de todas as ordens? O que leva alguém a aproveitar se de uma situação tão trágica e sair de seu lar para apropriar-se indevidamente de doações aos necessitados? Ou melhor: o que faz nosso animal ser gente? Essa conversa interna causa desconforto, mas contra fatos não há argumentos, e há muitos fatos que evidenciam nosso despreparo para atravessarmos a ponte entre ser vivo e ser humano. Não era Nietzsche quem dizia ser o homem uma ponte entre o animal e o super-homem? Talvez o homem ainda esteja no capítulo em que é a ponte entre o animal e o ser humano.

O que nos une não nos separa

O filósofo espanhol Fernando Savater tem idéias inspiradoras para essa jornada individual em busca de si mesmo, que só começa quando cada um aceita humildemente que não nasceu pronto. Uma primeira lição é parar de chamar autoconhecimento de auto-ajuda. Savater fala que humanidade é algo que se aprende por convívio e por contágio. É o famoso espelhamento do outro. O que percebemos no outro é indicativo de nossa própria identidade. É a vida interativa em sociedade que nos ensinaa entender que nossos mundos particulares de símbolos são diferentes entre si, mas nossa humanidade é comum. Dialogar (dividir o logos) é, portanto, imprescindível.

Em tempos de louvações à diversidade, Savater defende que nossa maior riqueza é a semelhança. Sem negar a beleza do que nos diferencia e nos torna indivíduos originais e únicos, ele vê na diversidade apenas um tempero para realçar o que é substancial. O que temos em comum é a substância que nos serve de essência. Uma essência tecida em milhões de anos.

Por essa lógica teoriza também a economista e física Rose Marie Muraro, que sempre foi destemida na investigação dos universos humano e cósmico. Feminista pioneira e guerreira exemplar pelas causas sociais, Muraro foi perseguida e chamada de maldita. Graças a esse espírito buscador, sua obra é um suporte para outros buscadores. Segundo ela, “estamos sendo engolidos pela própria criatura que criamos. A tecnologia que nos fez humanos levou-nos a uma desumanização”.

Sem tecnologia não somos humanos?

“Nossa evolução vem desenhando uma curva exponencial em velocidade lentíssima por dois milhões de anos. As curvas exponenciais de crescimento parecem crescer de forma modesta em seus primeiros momentos, depois atingem uma velocidade explosiva. Estamos nesse ponto da curva em que as mudanças vêm aceleradamente. Viemos devagar passando pelo Homo erectus, pelo Homo habilis e Sinantropo (homem de Pequim). Tornamo-nos caçadores usando flechas e lutando competitivamente, criando o que eu chamo de embrião da lei do mais forte. O início do comércio e o uso da pá e da enxada para dominar a terra coincidem com medidas de violência contra os mais fracos, contra a mulher”. (R. M. Muraro)

A tecnologia foi criada pelo homem e esse ato criativo nos diferenciou dos primatas orangotangos e chimpanzés que ainda pulam em galhos nas árvores. “Sem a tecnologia, o homem não seria homem. Mas agimos como aprendizes de feiticeiros que sabem começar o feitiço, mas não sabem desmanchálo”, diz Muraro. “Entramos no século XXI mergulhando de cabeça na nanotecnologia sem saber direito as conseqüências e efeitos colaterais desse uso. Hoje temos 500 patentes em nanotubos de carbono. Temos 600 trilhões de dólares em derivativos que nada mais é que dinheiro virtual. Mudanças climáticas e abusos tecnológicos acenam cataclismos inevitáveis nalinha de frente desse processo”, anuncia.

Tempos de miojo

Nessa perspectiva de que estamos na etapa mais veloz da curva exponencial de nossa evolução, o filósofo e educador Mario Sergio Cortella costuma usar uma palavra bem ilustrativa dessa cultura do vapt-vupt. Ele diz que estamos produzindo uma geração de seres ’miojizados’ (por analogia ao macarrão de três minutos) vivendo uma ’miojização’ da vida: fast-food, quick, express, etc. Além da pressa, a virtualidade seduz milhões de pessoas seqüestrando-as da vida real por meio de jogos como Second Life, SimCity e World of Warcraft. Que tipo deseres humanos estamos formando? Os ingredientes estão aí. Segundo um ditado, “se parece absurdo, é bem provável”. Resta saber como vamos nos posicionar. Talvez seja hora de darmos ouvidos àquela pergunta que não quer calar. Além de pensar no planeta que queremos deixar para as gerações futuras, podemos pensar no tipo de gente que estamos deixando para o planeta.

Um ser racional, político, obediente e ético?

Yves de la Taille, professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, nos lembra que o ser humano já foi chamado de ‘animal racional’, por ser capaz de manipular o universo simbólico das hipóteses. Já foi chamado de ‘animal político’, por ser capaz de gerenciar a sociedade da qual e na qual vive. Já foi chamado também de ‘animal obediente’, pois frequentemente é desejoso de seguir líderes de toda sorte. “Não sei se já o chamaram de ‘animal ético’”, diz ele. “Seria desejável, pois não somente todo ser humano é potencialmente um ser ético, como também porque, se não o for, o ‘animal racional’ poderá ser capaz de elaborar complexos planos de guerra e barbárie, o ‘animal político’ poderá promover a opressão e a injustiça, e o animal obediente’ poderá seguir fanaticamente líderes eles mesmo fanáticos. Ser humano, realmente ser humano, consiste em, como o propõe Ricoeur, viver uma vida boa, para e com outrem, em instituições justas”, conclui Yves.

Nem pau, nem pedra, muito menos o fim do caminho. Para ser humano, precisamos arregaçar as mangas, abrir mentes e corações para continuar ousando nesta idéia de ser gente. A receita ainda não está pronta. Há muito trabalho pela frente. É preciso estar encantado com essa ideia para encantar.


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