19 jun
Yes, nós temos genomas.
Tudo começa a se mover ao mesmo tempo, como placas tectônicas a deriva sobre um manto de lava quente. Um pequeno empurrão, um tropeção aqui, um esbarrão ali, um alívio de pomba branca que perturba a superfície calma do lago, e os movimentos se propagam como ondas. Não ondas planas, concêntricas: ondas esféricas, helicoidais, algumas caóticas e de freqüência indefinida. Ondas que retornam rápido, mesmo sem bater em nenhum obstáculo. E, ao contrário do que demonstra a física convencional, que aprendemos na escola, adquirem intensidade no percurso.
‘Notícia ruim chega logo’, diz o ditado. O fluxo de informações deve ser eficiente, para impedir tragédias. Mensageiros de guerra demoravam dias para levar notícias do front para as cidades. É conhecida a história do soldado grego que teve que correr de Maratona a Atenas para anunciar a vitória sobre os persas, impedindo que as mulheres cumprissem o prévio acordo de matarem seus filhos e elas mesmas, caso o aviso do sucesso não viesse em 24 horas. A informação é uma responsabilidade. E, cada vez mais, tem o peso de um continente, mas a velocidade de um beija-flor.
Em tempos de informação total, a rapidez é a tônica. Não é possível perceber trajetórias em perspectiva longa, não se pode antecipar movimentos com antecedência, não é permitido acompanhar nada à distância: tudo acontece aqui ou aqui ao lado, e moramos em uma enorme comunidade. Dividimos o quintal com outras famílias e nações. Grupos se agrupam, setores se setorizam, e redundâncias como essas passam a fazer sentido. Tudo parece ter o mesmo peso. Competem pela atenção e empenho dos atônitos cidadãos milhares de necessidades, grupos a contemplar, injustiças a compensar, erros a reparar. História e estórias sendo passadas a limpo. Mas não se pode tratar de todos os assuntos ao mesmo tempo, embora seja preciso ter uma visão sistêmica, uma compreensão do todo, para se compreender o detalhe. E uma compreensão do detalhe, para compreender o todo. Unitas multiplex: unidade e diversidade.
A informação não é mais monopólio. Nos acontecimentos recentes, em todas as capitais do mundo (e aqui no Brasil, nestes últimos dias), uma rede alternativa de propagação de imagens, filmes, relatos e mensagens se formou, transformando a comunicação em tempo real em um fenômeno que sabíamos ser possível, mas que não tínhamos visto acontecendo na prática por aqui. Por outro lado, infelizmente, cada vez mais informação é poder. Uma quebra no aparato tecnológico que suporta essa rede, e tudo cessa. Uma infiltração anônima em um sistema, e tudo silencia. Estamos dependentes do digital, e a cibridização (que se pode definir, muito brevemente, e sem dar conta da complexidade do tema, como a interação entre o mundo real e o mundo virtual) se apresenta como ponto inquestionável, embora frágil. Outro aspecto ainda a ter seus efeitos avaliados é a responsabilidade pela informação. Com a velocidade com que se propaga uma imagem, uma palavra, um comando, fica impossível, depois de minutos, saber de onde este sinal partiu. A responsabilidade se dilui. Não sabemos como lidar com isso. O universo das coisas autorais é um terreno seguro, onde pisamos sem receio.
Quando a informação passa de mão em mão, sem revisão ou mediação, passamos a depender de nossos próprio julgamento para avaliar os fatos. Isso gera desconforto, mas cria de novo uma característica de análise individual dos fatos que podíamos considerar dada como perdida na maioria dos setores envolvidos com o percurso da informação: a opinião. Há muitos anos, agências de notícias se limitam a mostrar mônadas de fatos, sem conexão. Informação que em semiótica se qualifica como primeiridade, sem análise, sem mediação, sem elaboração. É preciso resgatar as opiniões sobre os fatos. Precisamos de informações em secundidade, que possibilitem relações entre as coisas. Precisamos perder a preguiça de pensar. Acostumados a saber de tudo através de concessões, aprendemos desde cedo a ‘não falarmos com estranhos’.
Informação e conhecimento é algo que adquirimos, até o momento, de fonte segura, oficial e autorizada. A educação, ainda que sempre tenha sido compartilhada, tem vindo de fontes muito pontuais: a família, a escola, a religião, o Estado. Há muito pouco tempo (se é que não se usa ainda hoje), a expressão ‘aprendeu na rua’ significava a aquisição de algum hábito fora da norma, longe da tutela oficial do educador, fruto da quebra da autoridade: um comportamento ruim, adquirido fora da vigilância de um desses entes provedores de informação.
Comportamento é uma palavra complicada. Sua origem é a palavra ‘comporta’, algo que pode escapar à primeira percepção. Comportas são portas metálicas que controlam a passagem de líquidos. Suportam a força das águas em represas, regulam a vazão. Impedem que a água, controlada, invada os terrenos mais baixos, destrua cidades e plantações. Comportamento, então, seria o controle dos pensamentos, palavras e ações que possibilitam nossa convivência. Se for só isso, tudo bem. Quando comportamento passa a significar o aplainamento de individualidade, criatividade ou abandono de pensamento critico, seu efeito é castrador. Fugimos disso.
Contemporaneamente, sabemos que informação, conhecimento e educação vêm de múltiplas fontes. Nesse sentido, saímos na frente de muitos países, pois temos essa flexibilidade praticamente embutida no genoma. Somos adaptáveis às circunstâncias. Na dificuldade, inovamos. Na ausência de condições, criamos. Na crise, crescemos. Que isso não seja, de forma alguma, o elogio à precariedade, à ausência de infraestrutura: martelos continuam precisando de cabo para funcionar. Parâmetros técnicos mínimos em todas as áreas são imprescindíveis. Mas cabe uma constatação saudável de autoestima: somos bons na hora do aperto. Isso já foi percebido fora daqui, antes de ser institucionalizado como um dos componentes desse espírito nacional. Não preciso lembrar que não entram nesse aspecto questões ufanistas, pois o nacionalismo exacerbado é fenômeno patológico que não tem nada a ver com essas questões de educação. Normalmente ele toma espaço justamente quando estas questões se ausentam. Falamos aqui de outra coisa: características mais ou menos gerais, decorrentes de um processo histórico de formação de uma identidade cultural e social. Não há por que se orgulhar de eventos históricos aleatórios, sobre os quais não temos controle. Mas a ausência de autoestima também pode afetar o país de forma negativa. Apesar de cíclicas ondas de derrota da imagem nacional, somos reconhecidos, já há algum tempo, como bons colaboradores. Somos considerados, no geral, profissionais com visão estratégica, interação fácil em equipes e capacidade de redirecionamento rápido. Temos resiliência, criatividade e habilidade em manejo de orçamentos reduzidos.
Não é à toa que universidades de renome mundial seguem demonstrando seu interesse por talentos em diversas áreas do conhecimento, aumentando até mesmo o numero de cotas para estudantes brasileiros. E é até irônico que a adoção de cotas, normalmente alvo de polêmica interna quando se trata de reparar desvios históricos de exclusão social e étnica no país, seja tão comemorada nesses casos. É um paradoxo a ser enfrentado. E o ideal seria que cada vez menos nossos cérebros de ponta precisassem sair do país para conseguir exercer plenamente suas potencialidades. A solução para isso, como para quase todos os males que afligem o país cronicamente, é o investimento na educação em todos os níveis. Neste reconhecimento inequívoco de talentos individuais, vale ressaltar áreas de conhecimento de ponta, como genética, matemática avançada e biocombustíveis. Sem falar nas artes. Brasil não é só clichês tropicais. Yes, nós temos genomas.
De repente, como se não existisse calendário com data antes de 2013, e não houvesse um histórico de necessidades e um correspondente rol de propostas e soluções em debate, tudo parece ter que ser discutido do zero. Corremos o risco de perder avanços prévios. Nestes dias de demandas individuais e coletivas em conflito pelos quais passamos, verbos duplos com separação por hífen não são recomendados: empurra-empurra, corre-corre, quebra-quebra. Pode acabar em mata-mata, e ninguém quer isso. Temos amores a distribuir, depois que a tempestade passar. Estamos no meio de uma revolução mundial pela difusão do controle do conhecimento. Temos que estar preparados para isso. Chegou a hora das solicitações. Todos os grupos, ao mesmo tempo, querem apresentar suas agendas. Quem não tem bandeira, procura uma. Não faltam opções. Quem já tem bandeira, é melhor olhar direitinho para ela, e ver se ela continua significando a mesma coisa. A bandeira da educação é a única que se pode levantar paralelamente a todas as outras demandas, pois garante a formação de um homem pleno e consciente de seu papel social, de seu poder de transformação, e de suas responsabilidades dentro de qualquer processo histórico em que esteja inserido. Traz de volta o exercício da crítica, a tomada de decisão sem manipulação, e a possibilidade de opinião. Educação traz liberdade.
Autor: Alessandro Sbampato